segunda-feira, 30 de abril de 2012

Sonhos que aprisionam...



Havia na minha casa, até uns dias atrás, uma travessa cheia de pedras. Elas eram de cores, tamanhos e formatos diferentes. Tinham em comum o fato de haverem sido coletadas em viagens. Se eu estivesse num lugar especial, procurava uma pedra bonita e a metia no bolso. Mais tarde, de volta em casa, juntava o item novo à coleção. Haveria, talvez, umas 30 pedras na travessa.
Na semana passada, preparando a casa para uma reforma, disposto a recomeçar a vida, decidi que era hora de me livrar de coisas que eu vinha acumulando desnecessariamente há pelo menos 10 anos. Rodaram roupas, objetos, revistas, livros e, claro, as pedras. Mas não foi fácil.
Cada vez que eu punha uma coisa de lado, com a disposição de me livrar dela, algo me incomodava profundamente. Havia uma dor ali, ou várias dores diferentes.
As pedras eram parte do passado que, de alguma forma, eu tentava agarrar e materializar. Os livros, vários que eu nunca tinha lido, representavam uma inquietação pelo futuro: agora eu nunca saberia o que há dentro deles. As roupas, muitas delas sem usar há anos, ficavam me acenando do chão, empilhadas, com as situações que haveriam de vir e nas quais eu sentiria falta delas.
O nome desse sentimento inquietante é apego.
A gente se agarra às coisas, como se agarra às pessoas e às ideias. Na verdade está tudo entrelaçado. As coisas representam pessoas, que nos remetem a sentimentos e ideias. Ou representam sentimentos e ideias, que nos lembram de pessoas. Qualquer que seja a ordem, esse sentimento é um fardo. Tentando reformar e recomeçar, tentando reiniciar a vida, a gente percebe como é difícil deixar as coisas para trás. Inclusive os sonhos e os planos, por mais banais e genéricos que sejam.
Assim como nos apegamos a livros que nunca lemos, ou CDs que nunca ouvimos, também nos apaixonamos por coisas que nunca vivemos e gostaríamos de viver, embora não sejamos capazes de explicá-las ou defini-las. Essa forma de apego é vaga, mas tem uma força brutal sobre as nossas ações.
A esperança de viver coisas espetaculares (mas indefinidas) no futuro impede que a gente se mova no presente. Ela leva, por exemplo, algumas pessoas a protelar indefinidamente relações afetivas duradouras. Elas não conseguem renunciar ao sonho de perfeição do conto de fadas ou abrir mão das possibilidades eróticas oferecidas por um planeta com seis bilhões de pessoas. Isso equivale à dificuldade de jogar fora um DVD que nunca foi visto. É apego pelo desconhecido.
Tenho a impressão de que esse sentimento pelo futuro é o maior obstáculo à mudança na nossa vida.
O passado é uma entidade com peso e qualidade definidos. Lidamos com ele todos os dias. Desapegar não é simples, como mostra a minha coleção de pedras, mas pode ser negociado, como sabem os analistas. Memórias podem ser reavaliadas, experiências podem ser diluídas no tempo. Podemos chegar à conclusão que sobreviveremos ao grande amor e ao grande trauma – e com alguma pesar, por um e por outro, somos capazes de enterrá-los em alguma medida.
O futuro é outra história. Nele residem todas as nossas expectativas. Depositamos neles nossas aspirações práticas e subjetivas. Em direção a ele arremessamos os nossos desejos não realizados, a redenção das nossas frustrações. No futuro encontra-se a pessoa que desejamos ser. A felicidade mora lá e nos assombra como um fantasma a cada minuto da nossa vida. Não saberíamos viver sem ela. Seria desumano.
É contra essa esperança enorme, avassaladora e perniciosa que temos de lutar todos os dias para tomar conta da nossa vida. Não basta olhar para trás e se livrar das coleções de pedras. Ou das roupas velhas. Para começar de novo, em qualquer idade, temos de jogar fora os sonhos embolorados e as ilusões. Precisamos nos livrar do futuro sem rosto que nos assombra.
É provável que a felicidade, como coisa duradoura, não exista. Mas, se ela pode ser encontrada em algum lugar, ainda que de forma fugidia, é no presente. Para enxergá-la, precisamos estar de olhos bem abertos, livres das sombras do passado e das luzes que cegam no futuro. Não é fácil, mas quem disse que a vida é simples?


Ivan Martins

terça-feira, 24 de abril de 2012

Mentiras consensuais...





Existem pessoas felizes e pessoas infelizes, e todas elas se questionam. Umas bebem champanha e outras água da torneira, e se fazem as mesmas indagações.
Se existe uma coisa que nos unifica são as dúvidas que trazemos dentro.
São pequenas angústias que se manifestam silenciosamente, angústias que não gritam, ou gritam somatizadas em úlceras, insônias e depressões. Angústias diante das mentiras consensuais.
O que são mentiras consensuais? São aquelas que todo mundo topou passar adiante como se fosse verdade. Aquelas que ouvimos de nossos pais, eles de nossos avós, e que automaticamente passamos para nossos filhos, colaborando assim para o bom andamento do mundo, para uma sanidade comum.
O amor, o sentimento mais nobre e vulcânico que há, tornou-se a maior vítima deste consenso. Mentiras consensuais: o amor não acaba, não se pode amar duas pessoas ao mesmo tempo, quem ama quer filhos, quem ama não sente desejo por outro, amor de uma noite só não é amor, o amor requer vida partilhada, amor entre pessoas do mesmo sexo é antinatural. Tudo mentira.
O amor, como todo sentimento, é livre. É arredio a frases feitas, debocha das regras que tentam lhe impor.
Esta meia dúzia de coordenadas instituídas como verdades fazem com que muitas pessoas achem que estejam amando errado, quando estão simplesmente amando. Amando pessoas mais jovens ou mais velhas ou do mesmo sexo ou amando pouco ou amando com exagero, amando um homem casado ou uma mulher bandida ou platonicamente, amando e ganhando, todos eles, a alcunha de insanos, como se pudéssemos controlar o sentimento.
O amor é dono dele mesmo, somos apenas seu hospedeiro. Há outros consensos geradores de angústia: o mito da maternidade, a necessidade de um Deus, a juventude eterna.
Sobem e descem de ônibus milhares de passageiros que parecem iguais entre si, porém há entre eles os que não gostam de crianças, os que nunca rezaram, os que estão muito satisfeitos com suas rugas e gorduras, os que não gostam de festas e viagens, os que odeiam futebol, os que viverão até os cem anos fumando, os que conversam telepaticamente com extraterrestres, os ermitões, enfim, os desajustados de um mundo que só oferece um molde.
Todos nós, que estamos quites com as verdades concordadas, guardamos, lá no fundo, algo que nos perturba, que nos convida para o exílio, que revela nossa porção despatriada.
É a parte de nós que aceita a existência das mentiras consensuais, entende que é melhor viver de acordo com o estabelecido, mas que, no íntimo, não consegue dizer amém.


Martha Medeiros

domingo, 15 de abril de 2012

Os restos da outra...



Morava em uma das gavetas do meu guarda-roupa, até a semana passada, uma meia de lã verde que pertenceu ao avô de uma ex- namorada. A meia, de tão velha, estava transparente nos calcanhares. O avô, que eu não conheci, morreu há mais de uma década. E a ex-namorada, faz tempo, é feliz com outro homem

Mesmo assim, a meia seguia comigo.

De vez em quando, nas noites de inverno, ela saia da gaveta e me ajudava a dormir quentinho – e esse era a desculpa oficial para a sua permanência duradoura na minha casa e na minha vida.

Mas seria apenas isso? Não.

Como tantas outras coisas espalhadas por gavetas, paredes, armários, cabides, penteadeiras e até na porta da geladeira da minha casa, a meia de lã verde era um pedaço de memória. Estava lá para materializar um pedaço gostoso do passado e tentar impedir que ele sumisse.

Sei que há pessoas que não se interessam muito pelo que passou. Gente que vira as costas rapidamente para ontem e com rapidez ainda maior começa de novo, amanhã. Gente desapegada, que sai da vida dos outros deixando tudo para trás: móveis, afetos, objetos, fotografias, lembranças, meias...

Eu não.
A minha casa é o museu da minha vida. Quem passou por uma vai deixando sinais no outro. Fotos, cartas, entradas de cinema, meias...

Outro dia, procurando um documento, dei de cara com uma caixa azul cheia de cartas e bilhetes. Havia muita coisa antiga ali, de vários tamanhos e densidades. Fiquei bestificado e comovido. Mulheres apaixonadas ou desiludidas escrevem lindamente. Quando o amor acabou, quando aquela dor antiga já não faz mais sentido, o sentimento registrado em letra trêmula ou determinada ainda vibra – e nos transmite a sensação, deliciosa, de haver vivido. E ter estado em boa companhia.

Mas nem todo mundo entende assim.

Às vezes, uma mulher entra na vida de um homem determinada a apagar o passado. Não basta a ela um lugar no presente. Ela precisa limpar, com a energia e detergente, a memória do que passou. Sai farejando pelos cantos os restos deixados pela outra. De quem é essa camiseta de mulher? Por que você guarda esse guarda-chuva colorido? O que tem de especial nesses cristais?

Sumir com os sinais do passado na vida do outro, porém, é claramente uma tarefa impossível.

Primeiro, por que você não sabe contra o quê está brigando. A inimiga pode estar em toda parte. A cueca que seu namorado usa, por exemplo, por ter sido um presente da anterior. Ou o lençol no qual vocês dormem felizes. A camiseta de corrida que ele adora? Pois é... Aquele vaso bonito da sala, sabe qual? Foi ela quem escolheu numa viagem. A gravata bonita que ele usou no casamento? É do irmão dela. Ele nunca devolveu. Aliás, aquela camiseta que ela empresta quando você dorme na casa dela: grande, né?

Outra razão pela qual o passado é inexpugnável: aquilo que está no guarda-roupa ou na cristaleira é apenas a parte visível da memória e dos afetos. O que vai por dentro, muito mais importante, é invisível ao olhar. Não dá para brigar com as lembranças que o seu homem carrega dentro dele. Se ele escuta uma música no rádio do carro e sorri, o que você diz? Se vocês viajam a uma cidade em que ele já esteve, o que você sente? Se ele para, absorto, relendo a dedicatória de um livro, como você faz?


Ao contrário do presente, o passado não pode ser destruído ou alterado. Se tomar formas inocentes no presente – um quadro na parede, um comentário passageiro – isso é positivo. Demonstra uma saudável conexão com a própria biografia. Há algo de errado com as pessoas que encobrem seu passado como quem pinta a parede uma vez por ano. Por que é tão difícil confrontá-lo ou tão necessário evitá-lo? Melhor que ele exista e esteja em paz.


Tenho um amigo que, antes de se casar, deixou a futura mulher queimar o seu colchão de solteiro. Era um exorcismo bem-humorado e carinhoso, mas o diabo, mesmo assim, voltou. Depois de um bom tempo, mas voltou. Uma legião deles, na verdade.

Se as leitoras e leitores me permitissem um palpite, eu deixaria em paz as lembranças da outra. Ou do outro.
O que há demais numa camiseta cor de rosa que vive quietinha no fundo de uma gaveta? Nada. Aquele capacete tamanho G que dorme há anos embaixo da cama – qual o problema, rapaz? O motoqueiro não está mais lá. A galeria de rostos na moldura da Tok-Stok não sorri para você, mas isso é só um detalhe. Seu namorado está ótimo nas fotos. Há restos de decoração da outra pela casa toda? Nenhum problema: ela tinha um gosto divertido e, de qualquer maneira, o fulano gosta da decoração e da lembrança, não necessariamente da fulana.

Se isso ainda não bastar para você encarar o apego ao passado do seu homem com alguma tolerância, sugiro um argumento que eu uso comigo e que tem me ajudado a evitar o ciúme do pretérito: o efeito Orloff.

“Eu sou esse cara amanhã”.

Um dia, se esta relação acabar, eu não quero ser demonizado, exorcizado e depois esquecido como um sonho ruim. Não gostaria que as minhas fotos fossem apagadas do hard-disk (ok, tirar do Facebook eu entendo...). Não queria que as roupas que eu dei fossem jogadas fora, que as páginas de dedicatória dos livros fossem arrancadas, que a luminária que me deu tanto trabalho instalar na casa dela fosse trocada por outra, mais feia, apenas para me tirar do quarto.

Mas eu sou apegado – e, à minha própria maneira, realista. Prefiro ver uma meia na gaveta a não ver absolutamente nada. As meias eu sei que um dia serão jogadas fora. O nada eu sei que não existe.

Ivan Martins

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Ah, o coração...


uma pena que falar em coração tenha se tornado uma coisa tão antiga.
Mas o fato é que tornou-se.
Coração dilacerado, coração em pedaços, coração na mão…
Sentimos tudo isso, mas a verbalização soa piegas.
E, no entanto, estamos falando dele, do nosso órgão mais vital, do nosso armazenador de emoções, do mais forte opositor do cérebro, este sim, em fase de grande prestígio.
O que está em alta?
Inteligência, raciocínio, lógica, perspicácia!
Gostamos de pessoas que pensam rápido, que são coerentes, que evoluem, que fazem os outros rirem com suas ironias e comentários espertos.
Toda essa eficiência só corre risco de desandar quando entra em cena o inimigo número 1 do cérebro: o coração.
É o coração que faz com que uma super mulher independente derrame baldes de lágrimas por causa de uma discussão com o namorado.
É o coração que faz com que o empresário que precisa enxugar a folha de pagamento relute em demitir um pai de família.
É o coração que faz com que todos tremam seus queixinhos quando o Faustão põe no ar o quadro arquivo confidencial!
Eu gostaria que o coração fosse reabilitado, que a simples menção dessa palavra não sugerisse sentimentalismo barato, mas para isso é preciso tratá-lo com o mesmo respeito com que tratamos o cérebro, e com a mesma economia.
Se a expressão “beijo no coração” é considerada “over¿, voltemos a ser simples.
Mandemos beijos e abraços sem determinar onde; quem os receber, tratará de senti-los no local adequado.

Martha Medeiros

sábado, 7 de abril de 2012

Depois de tanto tempo...

 
 
O maior segredo do amor não é por que amamos, mas por que deixamos de amar.
Nem procure recapitular o que bebeu na noite anterior. Não tomou nada. É a ressaca da sobriedade. Um imperioso repuxo da boca.
A descoberta é sutil como perder um prendedor de cabelo. Quase insignificante como um enjoo, um cansaço. A consciência surgiu por acaso, sua origem não é bem certa, de repente na hora de escovar os dentes ou ao regar as plantas ou ao atender o interfone. Não tem lógica. Saímos do centro de gravidade que nos tornava absolutamente dependente dos gestos e das atitudes do outro. Estamos livres para pensar sozinhos e, ao mesmo tempo, presos para sempre na incompreensão.
O desamor é tão fulminante quanto a atração, mas com consequências embaraçosas. Como abandonar a militância, a ideologia, e não ser visto como um traidor? Como narrar o que não tem enredo e reunir sentido em frases soltas e ensimesmadas?
Qualquer um vai se envergonhar de contar, trata-se de um sopro, não mais de uma voz. Não é algo para perguntar, está resolvido, fertilizado de impressões.
Porque é duro sair de casa sem um motivo. Duro encarar quem amamos tanto tempo sem oferecer nenhuma explicação adequada e convincente para o fim. Duro conversar sem mesmo entender como ocorreu a passagem de lado, de uma fidelidade extrema e desesperada à indiferença. Duro executar a tarefa, sabendo que alguém aguarda ansiosamente uma palavra para desaguar os traços, uma palavra onde possa colocar a culpa e amaldiçoar nosso nome. Esse alguém precisa da palavra que não temos, como um pai ou uma mãe do corpo desaparecido do filho.
Vive-se a tragédia de não ter uma tragédia para desencadear a briga. Não haverá uma causa específica para a distância. Fugiremos do contato visual, por não corresponder mais às expectativas.
Receberemos a fama de mentiroso, de fraco, de que estamos escondendo a verdade. Muitos forçam uma causa, para descontar o preço da loucura. Muitos revisam os últimos movimentos para justificar o término. Muitos mentem para não passar trabalho. Muitos tentam diminuir a injustiça inventando fatos.
O que aumenta a penumbra é que incrivelmente nunca mais encontraremos nosso par, apesar de viver na mesma cidade, frequentar o mesmo bairro, dividir gostos semelhantes. Nenhum esbarrão no mercado ou no banco. Os amigos em comum apagam as pistas. Não dá para compreender se mudamos os hábitos ou os hábitos não nos pertenciam mesmo e queríamos agradar pensando que eram nossos.
Minha namorada reviu seu ex num bar. Ele estava acuado com o imprevisto, cumprimentou nervoso ao invés de ajudar o rosto a sorrir. Ela foi ágil, venceu as cadeiras de ferro, as mesas truncadas, esforçou seu quadril para criar interesse e perguntou o que ele andava fazendo. Eu assisti ao enlace esperando o momento de ser apresentado.
Sondei o que passou pela cabeça de Cínthya: aquele rapaz simpático, de cabelos compridos e óculos ingênuos, foi um dia seu melhor, que ela também foi um dia o melhor dele. Ela tinha que mostrar ternura e não me ferir de ciúme. Ele tinha que apresentar confiança e não se abalar comigo.
A emoção ficou represada ou talvez já houvesse secado. A questão é que não se falavam durante cinco anos. Idealizaram um reencontro que não aconteceu. Não existe justiça depois da separação.
 Fabrício Carpinejar

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Canibalismo emocional...


Às vezes eu sinto que vivemos numa bolha.
Não é o mundo-quitinete da classe média paulistana (ou carioca, ou brasiliense, ou recifense...), em que as pessoas se esbarram o tempo todo na porta do cinema e do restaurante. Tampouco é o mundo virtual da internet, no qual passamos horas mergulhados, entre caras conhecidas, no Facebook, no Twitter, no Instagran...
Não, a bolha a que eu me refiro é um espaço ainda menor, no qual só cabem dois corpos que decidem, em comum acordo, dividir juntos o espaço e o tempo. Falo de relacionamento, namoro, casamento. Falo da vida de casal.
Vocês já repararam como esse negócio tem uma tendência espetacular a nos confinar? Em torno de duas pessoas felizes vai se criando uma película invisível que as separa do mundo e, paradoxalmente, tende a asfixiar a felicidade.
No início, ficam de fora desse habitat restrito os amigos mais íntimos, justamente aqueles que costumavam estar mais próximos na vida do solteiro ou da solteira. Depois, vão sendo afastados, sem que a gente perceba, os amigos e colegas do segundo círculo de relações, aqueles com quem a gente costumava sair para tomar cerveja, viajar e ter conversas de valor inestimável sobre o trabalho e a vida. Por fim, e simultaneamente a isso tudo, a gente se afasta também da família, que vai sendo sutilmente negligenciada em nome dos planos e da preguiça do casal.
Ao final desse processo, um belo dia, a gente percebe que ficou sozinho numa bolha com a pessoa de quem gosta – e que entre nós e o resto do mundo existe agora uma grossa camada de indiferença.
Dentro dessa bolha, claro, ocorrem coisas maravilhosas. A intimidade física e psicológica do casal floresce, o autoconhecimento de cada uma das partes se amplia enormemente e cresce, no interior da vida a dois, uma deliciosa sensação de afeto, amparo e segurança. Dentro da bolha jamais estamos sós. Falamos com o outro o tempo inteiro ao telefone. Trocamos emails ao longo dia. E, se acordamos assustados no meio da noite, a outra metade está lá, respirando firme e tranquila ao nosso lado.
De muitas maneiras, essa é a situação com que sempre sonhamos. Quando fantasiamos romanticamente sobre uma relação, ela acontece em cenário fechado – somos nós, nosso amor, nossos planos e nossas realizações, com uma vida social que permita partilhar, de vez em quando, a nossa radiante felicidade privada. Assim são os casais nos filmes, assim acontece nos romances baratos. Assim pode ser a nossa vida, se quisermos.
A questão é, deveríamos desejar apenas isso?
Eu suspeito que não. Uma parte de mim, que já passou por isso, percebe uma armadilha na bolha da felicidade. Ela cria um ambiente que não se renova. Ela fomenta o canibalismo emocional – eu me alimento de você e você de mim – e encurta as nossas dimensões existenciais. Ao mesmo tempo em que crescemos para dentro da relação, corremos o risco de encolher para o resto do mundo – e reduzir, drasticamente, o alcance potencial da nossa vida. A felicidade hermética dos casais é autocomplacente e, lá na frente, pode ser frustrante. Bem frustrante.
 Minha sensação é que casais não são auto-sustentáveis, no sentido ecológico da palavra.
Os casais precisam de energia de fora para se renovar. Precisam da presença constante e questionadora dos amigos. Precisam das raízes e do compromisso da família. Precisam de uma vida social que inclua desafios e não apenas entretenimento. Os casais precisam encontrar, fora da bolha, motivos reais para sonhar e existir. E precisam, desesperadamente, da individualidade vigorosa de suas partes, que não se desenvolve sem o contato com o mundo.
Quando eu era garoto, as utopias estavam na moda. Imaginava-se, imaginávamos, que o mundo mudaria rapidamente, e de uma forma radical. Casais seriam parte essencial da grande e harmoniosa cumplicidade humana. Não se admitia que as pessoas pudessem se isolar egoisticamente dentro do seu amor. Era preciso participar do mundo. Transformá-lo.
Frequentemente, eu tenho a sensação de que esse impulso generoso nos faz falta. Na ausência dele, depositamos uma parcela exagerada das nossas expectativas no projeto privado das relações afetivas. Quando estamos sozinhos, somos tomados pela urgência de achar alguém e construir um universo de casal. Quando achamos pessoa certa, nos pomos a trabalhar, laboriosamente, às vezes de olhos fechados, na tarefa de nos fechar ao mundo junto dela. Temos medo.
Mas, viver assim, eu suspeito, não é boa ideia. No interior da bolha, mesmo das mais felizes, acaba faltando ar. Dentro dela, somos tentados a nos curvar sob as dimensões cada vez menores do mundo que criamos. Assim, quando a bolha explode - como é da natureza das bolhas explodir -, expõe ao mundo duas pessoas surpresas e desamparadas, que se sentem infinitamente sozinhas. E de mãos vazias.
Eu sugiro, portanto, que os casais não façam bolhas duradouras. Ou, pelo menos, que abram na parede delas portas e janelas por onde possam circular pessoas e ideias - passagens por onde a vida exterior possa entrar não apenas como mera decoração da felicidade, mas como ar, como água, como coisa vital e renovadora que a vida é.  

Por: Ivan Martins