sábado, 23 de agosto de 2014

O invariável...


                               


Outro dia escutei uma mulher separada decretar o fim da mesmice: resolveu se esbaldar na vida. Disse ela que não queria mais saber de relação fixa e que saía quase todas as noites a fim de se divertir apenas. Tem conhecido muitos caras diferentes, com alguns chega às vias de fato, e é isso aí, adeus à monotonia.

Mas o olhar dela não soltava faíscas, ao contrário, parecia bem opaco.

Naquele momento, lembrei uma frase do blog de um amigo paulista, o Eduardo Haak. Ele recentemente escreveu: “Nada é mais invariável do que as supostas variedades”. De primeira, quando li, me bateu uma estranheza, fiquei na dúvida se ele estava sendo irônico ou o quê, até que, ouvindo a moça baladeira contar de seus recordes de revezamento, me dei conta de que a situação dela era ilustrativa: toda variação que se torna sistemática também é mais do mesmo.

Ou seja, nada impede que a busca de um amor a cada sexta-feira se torne uma situação igualmente sujeita ao tédio. Virar refém da variedade pode ser uma atitude tão rotineira quanto dedicar-se a uma única pessoa por anos – arrisco até dizer que, ao dedicar-se a uma única pessoa, a chance de se ter uma vida mais dinâmica dispara.

Por quantas fases passa uma relação? O frio na barriga inicial, a paixão febril, as surpresas a cada nova revelação, as descobertas feitas a dois, a aproximação dos corpos, a intimidade cada vez maior, os amigos e a família agregando-se, cada viagem uma lua de mel, a troca de confidências, as diferenças aparecendo, os acordos feitos para manter a coisa funcionando, ajustes necessários, a paixão virando amor, a segurança da companhia um do outro, as fotografias se acumulando, planos sendo feitos a longo prazo, a primeira briga, as saudades, a consciência de que aquela pessoa é essencial, o reatamento, as juras, os cuidados para que não desande nunca mais, todos os cinemas, cafés da manhã, leituras compartilhadas, risadas, os comentários de fim de festa, as piadas internas, a confiança, os cafunés, os pedidos de conselho, a hora de ser amigo, a hora de ser bandido, o sexo evoluindo, o amor se fortalecendo, a passagem do tempo trazendo novos desafios, o orgulho pelo que está sendo construído, os estouros, os gritos, os beijos de novo... ufa, alguém aí me alcança um copo d’água?

Amar não é para amadores, e quando a relação é honesta, sólida e os protagonistas têm algum tutano, duvido que o enfado dê as caras.

É a variedade de parceiros que evita o aborrecimento? Nunca funcionou comigo. Nem no amor, nem fora dele. A alucinada atualização de notícias, a velocidade das redes sociais, os dias pulsando em ritmo supersônico, tudo o que não permite foco e entrega, hoje em dia, só me causa bocejos. Aprofundar-se é que é a verdadeira vertigem.

Martha Medeiros

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Emocionalmente indisponível...



                                

É fácil culpar os outros, mas quem está realmente pronto para um relacionamento?
Quando se trata de romance, todo mundo acha que está pronto. O cara que acaba de se separar, a garota que nunca superou o ex, aqueles que nunca conseguiram manter um relacionamento estável. Ao contrário dos empregos e dos vestibulares, para os quais as pessoas se preparam, quando se trata de relacionamentos, todo mundo nasce sabendo. Ou acha que nasce sabendo. Na verdade, se andassem com placas no peito, revelando seu verdadeiro estado emocional, muitos trariam as palavras “emocionalmente indisponível”.

Ao contrário do que gostamos de pensar sobre nós mesmos, ou sobre os outros, ninguém está pronto, em todos os momentos, a começar um relacionamento. Pense em quem você conhece bem: você acha que estão livres para gostar de alguém ou preparados para que alguém goste deles? A resposta, em boa parte dos casos, costuma ser não. Assim como os carros em movimento, nossas portas emocionais costumam andar fechadas. Por diferentes razões.

A primeira, óbvia, é nossa terrível imaturidade. Quando se trata de abrir nossa intimidade, ou de mergulhar na intimidade dos outros, somos uns bebezões. Nosso corpo cresce rapidamente, aprendemos muito na escola, mas nossas emoções e sentimentos não acompanham. Evoluem lentamente, em ritmo próprio, ao longo da vida.

Em certo momento, ainda jovens, descobrimos o amor. Com esse enorme sentimento, não vem um manual sobre nós mesmos – ou sobre o outro – que permita viver um relacionamento. Por isso sofremos tanto, por isso brigamos, por isso nos sentimos e agimos como adolescentes, mesmo aos 30 ou 40 anos. A verdade é que aprendemos, o tempo inteiro, como transformar afeto em relacionamento. Não é fácil. Pode demorar a vida inteira. Muitos de nós nunca aprendem o suficiente.

Outra dificuldade comum são as cicatrizes. Você vê a pessoa na rua, fala com ela, transa com ela até, e não tem noção das dores com que ela convive. Não sabe o estado de confusão e tumulto daquela cabeça. Somos todos assim, num grau ou noutro. Alguns são piores. Há quem mal se aguente. Sofre com neuroses, traumas, coisas ruins que a gente não enxerga mas estão lá, queimando. Às vezes, um contato afetuoso ajuda. Outras vezes, só exaspera os sentimentos de desconforto. De qualquer forma, não está pronto. Não interessa o estado civil ou a idade. Precisa cuidar da cabeça, tratar de si mesmo, lamber as feridas – antes de conseguir se relacionar de verdade. É uma das boas razões para fazer psicanálise. As conversas com os psicólogos apressam o autoconhecimento. Ajudam a lidar com as cicatrizes emocionais que atrapalham as relações afetivas. As pessoas também evoluem sozinhas, claro, pela passagem do tempo e pelo efeito salutar das experiências. Costuma demorar mais.

Se a gente deixar de lado as cicatrizes e a imaturidade, restará um único grande motivo que as torna emocionalmente indisponíveis: o passado. Muitos são prisioneiros de paixões inacabadas. Pense em você, pense nos seus amigos. Por quanto tempo, por quantos anos, você não esperou aquela mulher voltar, mesmo secretamente? E a sua amiga que só tinha olhos para um cara, que não estava mais interessado? É óbvio que gente nesse estado de sofrimento não pode entrar numa relação. Quem está assim precisa de tempo para sarar e liberdade para cometer novos erros. Não há mágica. Não há caras ou mulheres sensacionais que resolvam. A vítima tem de decidir sozinha que deseja sair do vício, que não quer mais sofrer ou esperar. Um dia, depois de frequentar um monte de gente sem se envolver, alguma coisa misteriosa acontece, e o passado – finalmente – fica para trás, permitindo que o futuro comece. Nesse dia, a placa no peito pode mudar para “emocionalmente disponível”.

Ivan Martins

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Frente a frente...

                       

Muitos de nós, talvez a maioria, gastam mais tempo nas redes sociais que nas relações sociais de verdade. É só fazer as contas. Interagimos com dezenas de pessoas por dia pelo Facebook, gastamos horas nisso, mas quase não encontramos ninguém pessoalmente. A situação é tão cômoda, envolve tanta gente, que essa forma de relacionamento à distância – por meio do celular ou do computador - tem se tornado a vida social real, enquanto a outra, que só ocorre quando as pessoas se encontram frente a frente, toma ares de coisa alternativa e eventual, uma espécie de universo paralelo que transcorre à margem daquilo que realmente importa.

Obviamente, essa situação tem consequências. Uma delas, terrível, é a redução das nossas habilidades sociais, como seduzir olhando nos olhos do outro.

Ontem, não pela primeira vez, uma amiga se queixava comigo da dificuldade em fazer engrenar, pessoalmente, um xaveco que anda rolando há semanas, e muito bem, pela internet. Nas conversas pelo Facebook, vai tudo às mil maravilhas. Quando ela encontra o sujeito na vida real, é um desastre. Ele parece ausente, não dá impressão de estar interessado. Fica uma estranheza entre eles que não existe nas conversas virtuais. Minha amiga acha que talvez ele não seja o cara. Acho que ele talvez seja viciado em redes sociais e não saiba como se comportar diante de uma mulher de carne e osso. Ou, talvez, seja ela que perdeu o jeito com a realidade.

Exceto por meio dúzia de seres humanos desenvoltos e privilegiados, esse negócio de sedução frente a frente nunca foi fácil. Somos criaturas tímidas que convivem, 24 horas por dia, com a contradição entre a fúria dos sentimentos e a inconveniência social de expressá-los. Quanto mais atraente nos parece a moça, mais sem jeito ficamos na presença dela. Quanto mais sensual o sujeito, mais a garota evita que ele perceba como ela se sente. São comportamentos adolescentes que, de alguma forma, nos acompanham a vida toda. Por isso, álcool e drogas são tão populares. Eles reduzem a distância entre nossos sentimentos e nosso comportamento.Permitem que as relações fluam com alguma naturalidade. Em direção ao sexo, naturalmente.

A comunicação de sentimentos à distância sempre foi mais fácil. A ausência do olhar do outro nos libera. Nos tornamos mais atrevidos e espirituosos quando não somos observados. Sem a possibilidade de censura do olhar, a comunicação intelectual e sentimental fica mais intensa. As inibições refluem. Dão lugar a ousadias verbais que só os bêbados e os grandes sedutores se permitem em pessoa. Por escrito, todo mundo é um pouco Don Juan – e isso não é nenhuma novidade.

No século XIX, quando a sociedade mal permitia que os jovens se falassem, os apaixonados trocavam cartas ardentes. Elas fazem parte da biografia de qualquer instruído do período. Nem seria preciso ir tão longe. Nos anos 1990, quando o e-mail tornou-se popular, surgiram os primeiros relacionamentos por internet. As pessoas voltaram a se apaixonar por escrito de uma forma que haviam parado de fazer por carta nos anos 1970. Com a vantagem de poder trocar mensagens instantaneamente, uma dúzia de vezes ao dia, num tom cada vez mais exaltado. Todo mundo com mais de 40 anos teve uma paixão dessas na virada do milênio. Quem não teve pode tentar recuperar agora, usando as redes sociais. É basicamente a mesma coisa, com menos texto e muitas fotos. Ou vídeos. O lance essencial dessas relações é a distância.

O problema, como a minha amiga e milhares como ela descobriram, é que a relação virtual pode se tornar o formato verdadeiro da relação. As pessoas se habituam àquela comunicação descarnada e já não conseguem se sentir à vontade na presença física do outro. Inibições iniciais e naturais parecem intoleráveis a quem trocava intimidades ou gracinhas de alta voltagem. O outro perde a graça pessoalmente, porque não é o desinibido que costuma ser no Facebook. Ou o espelho compreensivo que parecia ser no WhatsApp. A pessoa de verdade não está à altura da idealização que era construída. E ela mesma percebe isso. Daí o choque e o desencontro.

Essa é uma explicação para casos como minha amiga. Outra, mais estranha, é que há goste da relação virtual e não goste da relação física. É uma perversãozinha moderna. Na internet, a garota ou o cara podem se relacionar com uma dezena de pessoas, na maior intimidade. Sem problemas e sem inibições. Aí acontece uma inversão: a pessoa sai, uma vez por semana, apenas para fazer contatos visuais, explorados depois, e verdadeiramente, pelas redes sociais. Essas são as relações que lhe importam. Os encontros pessoais viram aquele momento esquisito, em que você cruza alguém com quem andou transando escondido e não cabe na sua vida pública. Uma espécie de saia justa.

Para quem não está nessa categoria de pervertido virtual, e gostaria de viver fisicamente suas relações à distância, recomendo moderação no uso da internet. Não permita que ela se torne o lugar essencial das trocas. Não deixe que a intimidade virtual avance a ponto de fazer do contato pessoal um anticlímax. Marque logo um encontro, enfrente a inibição de olhar nos olhos do outro, confronte a timidez e se permita superá-la. Aventure-se, corra riscos, sofra decepções reais. Essencialmente, saia da zona de conforto das conversas de Facebook. Elas são divertidas, viraram parte da rotina e nos parecem essenciais. Mas, como dizia o título de um filme antigo, são apenas uma imitação da vida. A vida de verdade começa quando a gente sorri – e alguém nos sorri de volta. Frente a frente.

Ivan Martins