domingo, 24 de junho de 2012

Alma de corno...



Nelson Rodrigues, o Nietzsche brasileiro, escreveu que certos homens nascem para ser traídos. Pesaria sobre esses infelizes genéticos uma pátina de fatalidade que os faria caminhar - feito um Édipo, feito um Hamlet, feito um idiota - em direção à única tragédia percebida como tal por estas bandas, o chifre.

Nelson era um homem dos anos 30, mas, neste assunto, acho que o imaginário brasileiro não mudou substancialmente. Para homens ou para mulheres. A traição ainda é vista como uma tragédia pessoal insuperável. A fraqueza masculina é a sua principal explicação, acompanhada, naturalmente, pelo pérfido caráter feminino. A violência, ou pelo menos a mais terrível vergonha, é percebida como a única resposta imaginável.

Tudo isso no plano moral, quase filosófico. Na vida real, as pessoas traem e são traídas cotidianamente, sem que isso cause enorme confusão. Os envolvidos sofrem as consequências íntimas e sociais dos seus atos, que às vezes são graves, mas, na maior parte das vezes, o drama privado não acaba em acerto de conta público. Embora às vezes termine, tragicamente. 

Mas o plano imaginário é terrivelmente importante. Nós vivemos tanto no mundo dos atos quanto no mundo das ideias. E as nossas ideias nesse terreno são antigas. Agimos de forma moderna, mas sentimos de forma antiquada. O velho fantasma da traição ainda nos põe obcecados. Homens e mulheres. Andamos por aí com um sorriso nos lábios, mas em estado de vigília permanente, interiormente atormentados. Morremos de medo. Parece que não existe nada mais importante no mundo do que a nossa maldita honra.

No fundo, temos alma de corno. Não por estarmos fadados a ser traídos, como pensava Nelson, mas por vivermos apavorados com essa ideia.

O medo da traição domina a nossa vida social. Fazemos piadas incessantes sobre o assunto para exorcizar o terror de que nos aconteça. Temos na ponta da língua frases lapidares sobre o tema. Comentamos intensamente a vida dos outros por perceber, melhor que os envolvidos, o inevitável chifre que vem vindo. Julgamos quem está em volta drasticamente, cegamente, com base na percepção de risco que ele ou ela nos impõe. Começamos e, sobretudo, terminamos relacionamentos por medo de ser enganados. O chifre assombra a nossa vida com a fatalidade do inevitável. Somos viralatas medrosos e assustados quando se trata desse assunto. Homens e mulheres. 

Parte da nossa paranóia tem origem óbvia: a mania de tratar coisas íntimas como assuntos públicos. Discutimos com tanta insistência a vida dos outros que antecipamos como os nossos reveses serão julgados, da mesma maneira frívola e impiedosa. À dor íntima da traição ou do abandono, que é imensa, juntamos a vergonha de ser expostos ao ridículo. Imaginamos as piadas, os comentários, o sarcasmo. Isso enlouquece. Se déssemos menos importância ao que os outros pensam e falam, se fôssemos mais privados na nossa dor, o sofrimento seria menor. E a paranóia também.

O outro componente do nosso medo é interior. Enxergamos na traição um julgamento a nosso respeito. Um homem de verdade não seria trocado; uma mulher atraente não seria deixada para trás. É puro Nelson Rodrigues. Quando somos enganados, sentimos que a culpa é nossa. Ao acusar o outro, tentamos desviar a atenção sobre a nossa suposta responsabilidade. Somos incapazes de perceber que o desejo vai como veio. Que a atração entre duas pessoas não implica num juízo sobre qualquer outra. Que as escolhas eróticas e afetivas não estão baseadas em quadros comparativos de virtude, virilidade ou feminilidade. Ao sermos enganados, esquecemos que o desejo não tem regras.

Talvez seja hora de deixar essa visão antiga para trás. Viver a felicidade sem medo, aproveitar a curtíssima vida sem sobressaltos. O amor entre as pessoas existe, os compromissos que elas assumem são reais, o respeito é parte da vida. Se as coisas mudarem, teremos de lidar com elas. Quando acontecer. Com dor, com tristeza, com raiva. Com dignidade também. Privadamente. O mundo de Nelson Rodrigues, dos homens temerosos e das mulheres impotentes, todos discutindo a vida de todos os demais no portão, vai se dissolvendo lentamente ao nosso redor. Podemos inventar para nós mesmos um outro mundo, melhor.

Ivan Martins

domingo, 17 de junho de 2012

Os traficantes do amor...



Na minha mesa de trabalho há uma rosa amarela do dia dos namorados. Entraram aqui um fortão e uma loirinha, vestidos de anjo, e deixaram o presente em nome de uma marca de cerveja. Achei engraçado, mas, assim que eles saíram, bateu certa melancolia. Como é fácil banalizar as coisas que nos comovem. Como é simples transformar em clichê – ou babaquice – os sentimentos terríveis que definem a nossa humanidade.
Olhe em volta: estamos cercados pela palavra amor.
Há um milhão de livros com esse título, dez milhões de músicas com esse refrão, centenas de filmes e um batalhão diário de novelas que trata do assunto. Pela quantidade de produtos amorosos que nos oferecem, é inevitável concluir que consumimos mais amor do que cerveja, chocolate e televisores de tela plana. Talvez um pouco menos que celulares.
Nosso apetite por amor não tem limites. Nossa sede de amor jamais acaba. Somos carentes insaciáveis. Sonhamos com o amor todas as noites. Acordamos encharcados de imagens doloridas. Dentro de nós se agita um mar de memórias que tem como centro as nossas experiências de afeto. Velhas, remotíssimas, e recentes. Elas nos movem de forma inconsciente. Somos filhos, somos irmãos, somos amigos, somos amantes, somos pais e mães. Todos nós. A cola que liga todas essas situações é o amor.
Começamos a receber amor ainda minúsculos, nos braços da mãe, e nunca mais paramos. Ele nos constitui emocionalmente, como os músculos e os ossos nos formam fisicamente. É parte essencial de nós e precisa ser reposto, realimentado, revivido a cada dia, a cada momento, em um processo que, a rigor, nunca tem fim.
Um alienígena que chegasse à Terra iria perceber, em dois minutos, nossa abissal vulnerabilidade. Além de água, alimento, abrigo, precisamos desesperadamente de amor - em várias formas, em qualquer forma na verdade. Somos viciados nele. Erguemos nossa vida em torno dele. Do erotismo violento da adolescência aos sentimentos suaves da velhice, nossa existência é uma longa experiência amorosa – ou uma busca desesperada, e muitas vezes cega, muitas vezes infrutífera, pelo amor.
É por isso que me incomoda a banalização comercial do sentimento. Ela me parece uma covardia, quase uma canalhice. Algo como oferecer luz a um cego. Diante do amor, somos todos ingênuos, frágeis, facilmente enganáveis. É simples nos vender qualquer coisa, nos iludir com qualquer promessa. Estamos, desde crianças, atrás da próxima dose dessa droga – e, às vezes, tenho a sensação de estarmos cercado de traficantes que não entregam a mercadoria. Nem poderiam. 
Nossos verdadeiros sentimentos são obscuros e sombrios, quase impossíveis de serem saciados. Eles não cabem nos formatos pré-moldados da indústria do amor. Pegue o caso da mulher que matou e destrinchou o marido uns dias atrás. Havia amor ali. Amor na forma de ciúme. Amor próprio. Amor de mãe que temia ser separada da filha. Mas não é disso que a marca de cerveja quer falar no dia dos namorados. A história de Elize Matsunaga precisa de um filme europeu pesado, triste, não comercial, daqueles que nos expulsam da sala de cinema com a mesma força com que mergulham dentro de nós.
Diante do tamanho das nossas necessidades, e da nossa imensa complexidade, a indústria do amor está fadada a nos desapontar. Ela oferece música para um momento de dor, mas mil músicas são incapazes de nos consolar quando acabamos de ser abandonados. Ela nos dá lindas histórias de amor, mas quem pode com elas quando está coberto por um manto intransponível de medo e tristeza?
O paradoxo do amor público, industrial, feliz, multiplicado nas redes sociais e nas salas de Multiplex, é que as nossas experiências realmente importantes são incomunicáveis e intransferíveis. Apesar do estardalhaço social, estamos sozinhos frente ao amor. Cabe a cada um de nós encontrá-lo, vivê-lo ou perdê-lo intimamente. É inevitável gemer sozinho no escuro, cercado de silêncio. O pessoal da rosa amarela não estará disponível se você precisar deles.

Ivan Martins

domingo, 3 de junho de 2012

Casos inacabados...



Tem gente que vai ficando na nossa vida. A gente conhece, se envolve, termina, mas não coloca um ponto final. De alguma forma a coisa segue. Às vezes, na forma de um saudosismo cheio de desejo, uma intimidade que fica a milímetros de virar sexo. Em outras, como sexo mesmo, refeição completa que mata a fome mas não satisfaz, e ainda pode causar dor de barriga. Eu chamo isso de caso inacabado.
Minha impressão é que todo mundo tem ou teve alguma coisa assim na vida. Talvez seja inevitável, uma vez que nem todas as relações terminam com o total esgotamento emocional. Na maior parte das vezes, temos dúvida, temos afeto, temos tesão, mas as coisas, ainda assim, acabam. Porque o outro não quer. Porque os santos não batem. Porque uma terceira pessoa aparece e tumultua tudo. Mas o encerramento do namoro (ou equivalente) não elimina os sentimentos. Eles continuam lá, e podem se tornar um caso inacabado.
Isso às vezes acontece por fraqueza ou comodismo. Você sabe que não está mais apaixonado, mas a pessoa está lá, dando sopa, e você está carente... Fica fácil telefonar e fazer um reatamento provisório. Se os dois estiverem na mesma vibração – ou seja, desapaixonados – menos mal. Mas em geral não é isso.
Quase sempre nesse tipo de arranjo tem alguém apaixonado (ou pelo menos, dedicado) e outro alguém que está menos aí. A relação fica desigual. De um lado, há uma pessoa cheia de esperança no presente. Do outro, alguém com o corpo aqui, mas a cabeça no futuro, esperando, espiando, a fim de algo melhor.
Claro, não é preciso ser psicólogo para perceber que mesmo nesses arranjos desequilibrados a pessoa que não ama também está enredada. De alguma forma ela não consegue sair. Pode ser que apenas um dos dois faça gestos apaixonados e se mostre vulnerável, mas continua havendo dois na relação. Talvez a pessoa mais frágil seja, afinal, a mais forte nesse tipo de caso. Pelo menos ela sabe o que está fazendo ali.
A minha observação sugere, porém, que boa parte dos casos inacabados não contém sexo. A pessoa sai da sua cama, sai até da sua vida, mas continua ocupando um espaço na sua cabeça. Você pode apenas sonhar com ela, pode falar por telefone uma vez por mês ou trocar emails todos os dias. De alguma forma, a história não acabou. A castidade existe, mas ela é apenas aparente. Na vida emocional, dentro de nós, a pessoa ainda ocupa um espaço erótico e afetivo inconfessável.
Esse tipo de caso inacabado é horrível. Ele atrapalha a evolução da vida. Com uma pendência dessas, a gente não avança. Você encontra gente legal, mas não se vincula porque sua cabeça está presa lá atrás. Ou você se envolve, mas esconde do novo amor uma área secreta na qual só cabem você e o caso inacabado. A coisa vira uma traição subjetiva. Não tem sexo, não tem aperto de mãos no escuro, mas tem uma intimidade tão densa que exclui o outro – e emocionalmente pode ser mais séria que uma trepada. Ainda que seja mera fantasia.
A rigor, a gente pode entrar numa dessas com gente que nunca namorou. Basta às vezes o convívio, uma transa, meia transa, e lá está você, fisgado por alguém com quem nunca dormiu – mas de quem, subjetivamente, não consegue se esquivar. Telefona, cerca, convida. Estabelece com a pessoa uma relação que gira em torno do desejo insatisfeito, do afeto não retribuído. Vira um caso inacabado que nunca teve início, mas que, nem por isso, chega ao fim. Um saco.
Se tudo isso parece muito sério, relaxe. Há outro tipo de caso inacabado que não dói. São aquelas pessoas de quem você vai gostar a vida toda, cuja simples visão é capaz de causar felicidade. Elas existem. Você não vai largar a mulher que ama para correr atrás de uma figura dessas, mas, cada vez que ela aparecer, vai causar em você uma insurgência incontrolável de ternura, de saudades, de carinho. O desejo, que já foi imenso, envelheceu num barril de carvalho e virou outra coisa, meio budista. Você olha, você lembra, você poderia querer – mas já não quer. Você fica feliz por ela, e esse sentimento é uma delícia.
Para encerrar, uma observação: o alcance e a duração dos casos inacabados dependem do momento da vida. Se você está solto por aí, vira presa fácil desse tipo de envolvimento. Acontece muito quando a gente é jovem, também se repete quando a gente é mais velho e está desvinculado. Mas um grande amor, em qualquer idade, tende a por as coisas no lugar. Uma relação intensa, duradoura, faz com que a gente coloque em perspectiva esses enroscos. Eles não são para a vida inteira, eles não determinam a nossa vida. Quem faz diferença é quem nos aceita e quem nós recebemos em nossa vida. O que faz diferença é o que fica. O resto passa, que nem um porre feliz ou uma ressaca dolorosa.

Ivan Martins