quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Homens aprendem...


A vida parece curta para o ritmo em que a gente aprende. Demora uma eternidade para que coisas óbvias se apresentem diante de nós em sua clareza elementar. Perdemos décadas da nossa existência no interior de uma grossa névoa de burrice emocional. É somente na virada dos 40 anos, às vezes dos 50, que a luz atravessa as nuvens. Não é tarde, mas é uma pena. Se a compreensão viesse antes, talvez a vida fosse melhor.

Falo por mim, naturalmente.

Haverá quem tenha entendido o mundo desde cedo. Deve haver gente extraordinária que percebe – aos 15, aos 20 anos, talvez aos 30 – que é impossível ter tudo ao mesmo tempo e que a arte da renúncia antecede o gozo. Alguém deve ter percebido, antes de ter cabelos brancos, que comprometer-se (pro-fun-da-men-te) é parte da experiência de ser feliz. Comigo não foi assim.

Falo de homens, claro.

Eles se debatem no interior dos relacionamentos como se estivessem se afogando. A mulher é bacana, a vida é boa, o sexo flui como música de câmera – mas o sujeito soçobra em ansiedade, incapaz de aquietar-se. Seu desejo se multiplica em todos os sorrisos, todos os cabelos, todo quadril largo ou estreito que passe requebrando. Ele muitas vezes nem faz sexo além da cerca, mas sua fidelidade se restringe ao sentido forense da palavra - não há contato físico, mas sobra imaginação e sofrimento, com terríveis consequências.

A relação verdadeira, que começara apaixonada, vai murchando. A sombra da tristeza invade a casa dele, a cama dele, o sorriso da mulher dele. Mas ele não sabe que precisa opor-se a isso. Acredita que o amor tem de brotar pronto e perfeito, sem esforço. Assim, ele desiste. Deixa rolar, broxar, o sentimento esvair-se. É um espontaneísta, afinal. Ou uma anta, como perceberá logo depois. Mas então o barco já terá virado.

No fundo, eu temo, ele queria que desse errado.

Estar casado (ou estar junto, ou ter alguém) era um estorvo. Havia muita coisa acontecendo e ele nunca renunciara. O casamento, (o namoro, a relação) sempre lhe parecera provisório. Tinha vergonha de fazer planos. Sentia-se numa farsa onde faltava algo. Ele achava que era amor. Anos depois, descobriu que era maturidade, comprometimento, empenho. Dele. Não sabia que era preciso dar-se. Talvez nem soubesse como. Criatura bruta e triste, cheia de fome.

Ainda bem que o tempo existe.

Com ele, aprende-se a importância das coisas. Com a soma das experiências repetidas, mesmo um sujeito lerdo – e são quase todos - entende que é preciso cuidar da mulher que ele ama. Não apenas como um objeto de prazer que pode irritar-se e partir. Não apenas como algo que ele pode perder. Mas como uma parte essencial da vida dele, que tem de ser preservada e aprimorada. Com o tempo e com boa vontade, o sujeito aprende a reciprocidade. Mas leva tempo.

Ivan Martins

sábado, 14 de dezembro de 2013

Antes que a morte nos separe...


                            


Enterros, velórios e missas de sétimo dias são ocasiões que nos fazem pensar, inevitavelmente. Estamos ali, vivos, na presença física ou espiritual da morte. Em geral, ligados a ela por alguém amado ou conhecido que se foi. Não dá para evitar a filosofia nessas horas – e um pouco de medo.

Dias atrás, despedi-me de um conhecido que partiu antes da hora. Entrei sereno na igreja, reconheci velhos colegas e me sentei entre eles para esperar a missa. A cerimônia transcorreu sem sobressaltos até o final, quando o padre deu a palavra à companheira do morto. Emocionada, mas firme, ela leu umas poucas palavras ao microfone. Essencialmente, disse que ele talvez não soubesse o quanto o admiraram, quanto o queriam aqueles que ele deixara para trás. Foi o que bastou para me inquietar.

Por causa das companhias de seguro, que vivem nos lembrando da fragilidade da existência, somos levados a pensar, de vez em quando, sobre o estado material da nossa vida. Se eu morresse amanhã, o que deixaria para trás? Está tudo certo, estão todos amparados, os papéis estão em dia? Gente muito jovem não se preocupa com isso, mas basta ter filhos para que essas ideias, insidiosamente, nos visitem. É natural e até saudável. Só quem se acha eterno está isento de preocupações. Os outros temem.


Mas não foi isso que me inquietou na igreja.

O que as palavras da viúva evocavam era algo diferente, imaterial. Ela falava do legado emocional e afetivo do morto. Ela aludia, em seu breve discurso de despedida, ao que ele deixara sentimentalmente para trás – de forma incompleta - com os amigos, com a família, com a mulher. Suas palavras faziam pensar nas relações rompidas pela morte e no estado das relações com os que ficam. Se morrêssemos amanhã, o que restaria sem ter sido dito? Muito, eu imagino.

Nossas vidas estão repletas de relações pendentes.

Há o amigo, a ex-namorada, a prima com quem você não fala há muito tempo, embora isso o inquiete. Questões grandes ou pequenas esperaram ser resolvidas com o irmão, com o tio, com a amiga com quem você, talvez, não tenha agido direito. Dentro do círculo mais íntimo, mesmo ali, persiste a sensação de que nem tudo foi dito entre pai e filho, entre marido e mulher, entre namorados de longa data. Na avalanche estúpida das horas que se esvaem, tendemos a adiar conversas e encontros. Eles não são urgentes, nos parece. Temos todo o tempo do mundo, nos iludimos. É natural que seja assim.

Tudo o que está vivo é incompleto. Não é diferente com as relações humanas. Apenas o que acabou emocionalmente está concluído e encerrado. O resto segue nos assombrando com vírgulas, reticências e interrogações. Aquilo que está vivo é uma possibilidade. Somente a morte coloca o ponto final em algumas relações. Naquelas que mais importam, eu diria. Naquelas que nos inquietam e das quais nos cabe cuidar.

Ao contrário das coisas materiais, é impossível resolver relações vivas. Elas podem ser cultivadas, saboreadas, vividas, mas não resolvidas. Elas prosseguem. Nunca haverá a conversa definitiva com aqueles que a gente ama. Talvez haja a última, mas isso não se sabe. Sabemos da conversa mais recente, da próxima. Dessas deveríamos cuidar. Sempre haverá outro programa de televisão, outro filme, outro amigo chamando ao telefone – mas o momento deste encontro não se repete. As palavras que trocamos aqui (ou não trocamos) fazem diferença.

O que podemos fazer – e que talvez devamos fazer – é manter nossas relações em dia. Se alguma coisa trágica ocorrer, teremos rido juntos ontem, ou falado na semana passada sobre o filme. Talvez tenhamos discutido ao telefone – é inevitável – mas dormimos abraçados, conversando baixinho. Lembrei de comprar o presente no dia certo, liguei aquela noite como prometido, tomamos um porre medonho na sexta-feira, conversamos longamente no carro durante a viagem. Andávamos na rua quando a chuva começou. Estivemos felizes, estivemos bravos, estivemos juntos. Foi bom.

Será que me faço entender?

As coisas materiais têm o poder de nos obrigar a agir. Os nossos sentimentos, estranhamente, não. Saímos todas as manhãs para o trabalho, ligamos para o advogado, trocamos emails com gente chata sobre o projeto que nos interessa. Mas não gastamos uma fração dessa energia para cuidar de coisas que nos são intimamente caras: o amigo de quem temos saudades, a ex-namorada que está na pior, a tia de que gostamos tanto. O cotidiano dos sentimentos e a rotina das relações são negligenciados. Ou tratados com menos importância do que deveriam. Ao contrário do que parece, isso não constitui uma traição aos outros, mas a nós mesmos.

Por isso fiquei inquieto com as palavras da missa.

Tive a impressão de que minhas pendências são grandes. As contas e os impostos estão pagos, mas a vida emocional está atrasada. Se eu sumisse hoje, se eu morresse, muitas palavras ficariam por serem ditas, muitos abraços ficariam no ar. Pessoas queridas ficariam sem respostas. Tive a impressão, na missa, de que há muito a fazer antes que a morte nos separe – e que o tempo, afinal, não é tão longo.

Ivan Martins