quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Solidão contente...



Ontem eu levei uma bronca da minha prima. Como leitora regular desta coluna, ela se queixou, docemente, de que eu às vezes escrevo sobre “solidão feminina” com alguma incompreensão.

Ao ler o que eu escrevo, ela disse, as pessoas podem ter a impressão de que as mulheres sozinhas estão todas desesperadas – e não é assim. Muitas mulheres estão sozinhas e estão bem. Escolhem ficar assim, mesmo tendo alternativas. Saem com um sujeito lá e outro aqui, mas acham que nenhum deles cabe na vida delas. Nessa circunstância, decidem continuar sozinhas.

Minha prima sabe do que está falando. Ela foi casada muito tempo, tem duas filhas adoráveis, ela mesma é uma mulher muito bonita, batalhadora, independente – e mora sozinha.

Ontem, enquanto a gente tomava uma taça de vinho e comia uma tortilha ruim no centro de São Paulo, ela me lembrou de uma coisa importante sobre as mulheres: o prazer que elas têm de estar com elas mesmas.

“Eu gosto de cuidar do cabelo, passar meus cremes, sentar no sofá com a cachorra nos pés e curtir a minha casa”, disse a prima. “Não preciso de mais ninguém para me sentir feliz nessas horas”.

Faz alguns anos, eu estava perdidamente apaixonado por uma moça e, para meu desespero, ela dizia e fazia coisas semelhantes ao que conta a minha prima. Gostava de deitar na banheira, de acender velas, de ficar ouvindo música ou ler. Sozinha. E eu sentia ciúme daquela felicidade sem mim, achava que era um sintoma de falta de amor.

Hoje, olhando para trás, acho que não tinha falta de amor ali. Eu que era desesperado, inseguro, carente. Tivesse deixado a mulher em paz, com os silêncios e os sais de banho dela, e talvez tudo tivesse andado melhor do que andou.

Ontem, ao conversar com a minha prima, me voltou muito claro uma percepção que sempre me pareceu assombrosamente evidente: a riqueza da vida interior das mulheres comparada à vida interior dos homens, que é muito mais pobre.

A capacidade de estar só e de se distrair consigo mesma revela alguma densidade interior, mostra que as mulheres (mais que os homens) cultivam uma reserva de calma e uma capacidade de diálogo interno que muitos homens simplesmente desconhecem.

A maior parte dos homens parece permanentemente voltada para fora. Despeja seus conflitos interiores no mundo, alterando o que está em volta. Transforma o mundo para se distrair, para não ter de olhar para dentro, onde dói.

Talvez por essa razão a cultura masculina seja gregária, mundana, ruidosa. Realizadora, também, claro. Quantas vuvuzelas é preciso soprar para abafar o silêncio interior? Quantas catedrais para preencher o meu vazio? Quantas guerras e quantas mortes para saciar o ódio incompreensível que me consome?

A cultura feminina não é assim. Ou não era, porque o mundo, desse ponto de vista, está se tornando masculinizado. Todo mundo está fazendo barulho. Todo mundo está sublimando as dores íntimas em fanfarra externa. Homens e mulheres estão voltados para fora, tentando fervorosamente praticar a negligência pela vida interior – com apoio da publicidade.

Se todo mundo ficar em casa com os seus sentimentos, quem vai comprar todas as bugigangas, as beberagens e os serviços que o pessoal está vendendo por aí, 24 horas por dia, sete dias por semana? Tem de ser superficial e feliz. Gastando – senão a economia não anda.

Para encerrar, eu não acho que as diferenças entre homens e mulheres sejam inatas. Nós não nascemos assim. Não acredito que esteja em nossos genes. Somos ensinados a ser o que somos.

Homens saem para o mundo e o transformam, enquanto as mulheres mastigam seus sentimentos, bons e maus, e os passam adiante, na rotina da casa. Tem sido assim por gerações e só agora começa a mudar. O que virá da transformação é difícil dizer.

Mas, enquanto isso não muda, talvez seja importante não subestimar a cultura feminina. Não imaginar, por exemplo, que atrás de toda solidão há desespero. Ou que atrás de todo silêncio há tristeza ou melancolia. Pode haver escolha.

Como diz a minha prima, ficar em casa sem companhia pode ser um bom programa – desde que as pessoas gostem de si mesmas e sejam capazes de suportar os seus próprios pensamentos. Nem sempre é fácil.

Ivan Martins

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Nós, os perdidos...


Gente envolvida com a espiritualidade oriental tem uma palavra bonita para falar de si mesmo. Eles se descrevem como buscadores – pessoas que procuram respostas para as angústias da existência através da contemplação. Os buscadores podem ser religiosos ou laicos, mas todos exibem a disposição de encarar a vida como uma jornada de transformação pessoal e compreensão do mundo. Essa jornada, invariavelmente, começa no momento em que cada um deles se descobre perdido. Considerando o quanto essa experiência é frequente, somos um planeta repleto de buscadores em potencial.

Sem a necessidade de consultar estatísticas, eu aposto que a maior tribo do mundo é formada por gente que está na vida sem ter noção do que fazer com ela ou consigo mesmo. São os perdidos. Eles podem ter rotinas, hábitos, obrigações e distrações, mas o senso de propósito e direção está ausente. Vivem um dia depois do outro e às vezes parecem avançar decididamente em alguma direção, mas é melhor não perguntar por quê. A pessoa pode desabar no choro. Quem é perdido - ou está perdido - tem sentimentos dolorosos e confusos.

Se essa descrição parece familiar demais, não se envergonhe: o mundo está cheio de gente como você, ainda que passem o dia fingindo que sabem para onde vão. Eu, por exemplo, me sinto perdido várias vezes por semana, e tudo indica que sou uma pessoa normal. Estar perdido ou sentir-se perdido parece ser parte da condição humana. Ninguém escapa.

Isso não quer dizer que seja gostoso. Todos se lembram da sensação infantil de soltar-se da mão da mãe na multidão. É horrível. Estar perdido na vida adulta pode reviver a mesma aflição. A gente olha em volta e não sabe para onde prosseguir. Não sabe nem para onde quer ir. Não há ninguém capaz de nos acolher e orientar. A confusão é assustadora e pode durar um tempo enorme. Ao contrário das crianças, os adultos não choram pedindo ajuda. E, mesmo quando o fazem, outros adultos não vêm correndo para abraçar e socorrer. Sentir-se sozinho parece ser parte inseparável da sensação de estar perdido.

Ainda bem que não é o fim do mundo. Embora o mundo adore os práticos e trate melhor quem avança em linha reta, a falta de rumo pode ser apaixonante. Seres humanos perdidos costumam ser transparentes e sinceros, além de surpreendentes. A fragilidade da sua condição lhes confere uma espécie de humanidade explícita, que pode ser muito sedutora. Se a pessoa não tem um plano detalhado para a própria vida, está aberta a grandes e pequenas aventuras. Pode viajar, pode se apaixonar, pode mudar de ideia radicalmente. Pode jogar tudo para o ar e começar do zero – em outro país, em outra companhia, em outra profissão, em outro plano.

Mesmo os moderadamente perdidos costumam ser mais interessantes do que os que andam pela vida com GPS ligado. Esses, francamente, costumam ser chatos, enquanto as pessoas que sofrem, hesitam e se confundem são capazes de despertar compaixão e empatia. É mais fácil amá-las – eu acho - porque a gente se percebe nelas. Elas verbalizam os medos que os outros escondem e fazem perguntas a si mesmas que os demais têm vergonha de fazer. Eu sou feliz? Eu tenha certeza? É realmente isso que eu desejo?

Quando a gente se envolve com gente assim, é convidado a entrar num mundo que sacode e suspira, e que, frequentemente, tem os olhos cheios de lágrimas. Nele há longas conversas noturnas, sexo apaixonado e necessidade de abraçar e cuidar. Existe também o risco de que amanhã cedo sua pessoa perdida se levante e anuncie a partida, movida por uma inquietação aguda e inefável que exige apenas uma coisa: mudança. O que fazer?

Tudo isso parece levemente insano, mas, num mundo estropiado como é o nosso, os perdidos podem estar certos. Como é possível ter clareza e direção em meio ao caos que nos circunda, lendo as coisas assustadoras que lemos nos jornais? Talvez haja algo de errado com quem não sente estar perdido e simplesmente avança, como se o mundo não estivesse chacoalhando ao redor. Os que têm certeza talvez sejam esquisitos.

Isso nos traz naturalmente de volta aos buscadores. Num mundo de mentiras e autoengano, eles são de alguma forma especiais, porque admitem estar sem rumo e desorientados. Fazem disso a sua plataforma de largada. É provável que, assim como o resto de nós, eles não cheguem a lugar nenhum - mas ao menos terão tentado. Não é certo que a vida faça sentido e que haja nela algum propósito. Mas tampouco é certo que seja o contrário. Talvez a vida seja aquilo que a gente escolhe fazer dela: um bolinho de arroz, um filho de cabelos crespos, um beijo no escuro da barricada.

Ivan Martins