domingo, 27 de novembro de 2016

Quem gosta, mostra...



Lembro perfeitamente da frustração: eu encantado pela moça e ela me driblando, por quase um mês. O primeiro encontro fora perfeito, mas nunca mais se repetiu. Ela se dizia ansiosa para me ver, mas sempre arrumava uma nova desculpa para adiar. Um dia, cansei das explicações, da incerteza e do desapontamento. Apesar da atração que sentia por ela, cortei a comunicação e nunca mais nos falamos.
Essa experiência marcante deu forma a um princípio que tento seguir à risca: relações amorosas começam de forma simples e recíproca, ou nem começam. Acredito que os sentimentos se expressam de maneira clara. Quem gosta, mostra. Quando as coisas são emocionalmente claras, os atos são simples. Quem está hesitando, enrolando ou adiando, é porque não sabe o que sente – e poucas coisas são mais dolorosas do que se envolver com quem não sabe o que quer.
Vale o mesmo para a reciprocidade. Se você está perdidamente apaixonada e a pessoa parece mais interessada na tela do celular, cuidado – esse costuma ser o preâmbulo de uma roubada. Gente que começa desinteressada pode virar a pessoa mais apaixonada do mundo, mas as chances são remotas. Atração e conexão costumam ser instantâneas e recíprocas. Como alguém pode começar uma relação sem elas?
Escrevo essas obviedades porque nossas carências – e nossa arrogância – costumam ser fonte de dolorosa confusão. Resolvemos correr atrás de gente que não está nem aí para nós e insistimos em cortejar pessoas que não nos dão atenção. É fácil detectar nos olhos e na atitude do outro os sinais de desinteresse, mas fingimos de bobo e persistimos.
Desesperados de solidão e carência, acreditamos, arrogantemente, que seremos capazes de seduzir quem nos ignora ou nos quer apenas como amigo – embora seja mais fácil, e mais bonito, renunciar ao que jamais teremos.
Quando você desencana do outro, simplifica a sua vida e a dele. Permite que as energias fluam. Mas para isso é preciso entender, no fundo da alma, que não será amado desta vez. É necessário abrir mão. Aqueles olhos imensos não olharão você como você olha para eles. Aquele corpo não estará em suas mãos, da forma que desejou. Se formos capazes de aceitar, virar as costas e sair andando, tudo fica mais simples. Ao desistirmos de controlar o mundo, ele se torna um problema menor.
A verdade, nós sabemos, é que ninguém seduz ninguém. Atrações acontecem espontaneamente, inexplicáveis para quem as experimenta. A aproximação entre duas pessoas se faz por uma ponte invisível que está lá desde o começo. A gente anda sobre ela, mas não sabe do que ela é feita. E podemos descobrir, como na história que abre esse texto, que nem a ponte é suficiente: a pessoa está atraída, ou parece atraída, mas falta à vida dela a simplicidade que torna as coisas possíveis.
Uma das razões que levam as pessoas jovens a amar e se envolver com tanta frequência é a simplicidade das suas vidas. Os jovens são disponíveis por natureza. Conhecem alguém hoje, dormem juntos na mesma noite, namoram no dia seguinte e podem estar na mesma casa em um mês. Por que não? Jovens tendem a ser emocionalmente leves porque têm menos história e menos compromissos.
Compare a disponibilidade emocional de uma garota de 25 anos com a de uma mulher de 40, separada e com dois filhos. Agora, pense num cara solteiro de 28 anos. Imagine quando ele tiver 40 e for divorciado, pai de uma garota, e estiver brigando por dinheiro com a ex-mulher. Quem vai estar mais livre para se apaixonar?
As pessoas têm problemas de trabalho, vêm de famílias difíceis, sofrem de depressões, são vítimas de doenças. Há uma multidão de pessoas adoráveis que lida com grandes dificuldades, todos os dias. Não se pode esperar delas a simplicidade de quem chegou à vida ontem, com um sorriso nos lábios e uma mochila nas costas.
Como estamos num mundo em que as pessoas se casam várias vezes e levam com elas tudo o que fizeram nas vidas anteriores, é importante aprender a lidar com a complexidade. Se você não foi casado, pode se apaixonar por alguém que foi. Se você não tem filhos, seu próximo parceiro ou parceira pode ter. Se a sua vida é leve e solta, destituída de problemas, sorte sua, mas um monte de gente não vive assim – e nem por isso são menos interessantes.
Compreender isso é essencial, mas não muda o fato de que a simplicidade é necessária. Alguém, em algum momento, tem de esticar a mão para o outro, que deve segurá-la sem hesitação. No meio da confusão, um gesto tem de ser simples. Juntas, pessoas apaixonadas lidam melhor com as dificuldades da vida. Mas os sentimentos têm de ser claros e recíprocos. Ou não rola
Ivan Martins

sábado, 19 de novembro de 2016

O ponto de não retorno...


Chega um momento em que a pessoa que um dia amamos ainda é capaz de nos magoar, mas não será capaz de nos fazer feliz.

Eu me dei conta disso faz uns dias, durante um almoço com uma amiga que vive uma separação demorada e difícil. Ela contava o que sentiu ao ver seu ex com outra mulher, no Facebook. “Não daria para voltar com ele. Não é mais possível. Mas doeu tanto vê-lo com outra...”

Esse é o ponto de não retorno: a relação anterior ficou tão distante que não se pode mais voltar a ela. A única opção é avançar sozinho, torcendo para que outro amor apareça e nos ajude superar o ciúme e o ressentimento deixados pela separação.

Identificar esse momento delicado é ainda mais essencial para quem está num relacionamento apodrecido. Nele, o outro pode nos machucar e nós podemos machucá-lo, diariamente, mas ninguém é capaz de dar felicidade ao parceiro ou a si mesmo.

Se o convívio se resume a desentendimentos, frustrações e brigas, e se o sexo, quando acontece, vem recoberto por raiva e animalidade, como dois bichos que depois se envergonham um do outro, talvez as coisas tenham chegado ao ponto de não retorno: ninguém sabe o que virá pela frente, mas está claro que não resta nada atrás.

Muita gente passa os melhores anos da sua vida no inferno, sem perceber que o relacionamento chegou ao ponto de não retorno. Elas têm esperança, ou se acomodaram ao sofrimento, ou estão com medo de recomeçar. Mas, quando as únicas coisas que podemos trocar com o outro são raiva, dor e humilhação, é hora de partir. Ou de mandar partir.

Por que hesitamos tanto?

Temo que seja um legado familiar. Muitos de nós passaram a infância vendo os pais brigarem e se desrespeitarem. Inconscientemente, acreditamos que é assim que vivem os casais. Achamos que isso é amor. Se tivéssemos crescido num ambiente de carinho, erotismo e respeito mútuo, perceberíamos mais claramente os descaminhos de nossas relações. Mas não. Para muitos de nós, falta o aplicativo que permite diferenciar amor de ódio, abuso e doença. Temos de obtê-lo ao longo da vida, da maneira mais difícil: experimentando felicidade e sofrimento, e percebendo a diferença entre eles.

Localizar o ponto de não retorno não é suficiente para resolver nossos problemas, porém.

Minha amiga, aquela da foto no Facebook, exemplifica as dificuldades: desde a separação, há dois anos, ela conheceu uma dezena de caras, mas não se envolveu com nenhum deles. Continua conectada ao ex, que também está sozinho. Pareceria que eles se amam, mas não é o caso. Acabou. Ele foi embora porque não a queria mais. Ela o amava, mas, depois de tudo, sente que o sentimento se gastou. Espera alguém que inaugure um novo período em sua vida. Enquanto isso, os dois ainda estão emocionalmente conectados.

“Estou triste porque vou passar o Natal e o fim de ano sozinha, novamente, mas não gostaria de estar com meu ex”, ela me disse. “Quero alguém por quem eu esteja apaixonada, e que esteja apaixonado por mim. Quero começar o Ano Novo feliz.”

Quem não?

É por isso que a gente olha em volta e procura. No começo, em meio ao luto da separação, a gente não enxerga e não percebe ninguém. Só há sombras ao redor. Depois, devagarinho, os rostos vão saindo para a luz e a gente enxerga um sorriso, um olhar, uma voz. Então a gente tenta aqui, e descobre um abraço acolhedor. Ali, um beijo apaixonado. Acolá, uma conversa terna e inteligente. São pessoas inteiras, algumas lindas, que ainda nos parecem pedaços de gente. Aos poucos, porém, elas também vão se tornando inteiras – porque nós também nos tornamos inteiros – e é possível trocar, descobrir, experimentar. Um dia, aparece alguém que reúne tudo num único corpo, num único olhar, e que ocupa um novo espaço em seu coração. Um dia a gente diz de novo, eu te amo.

Mas, antes, temos de passar, sozinhos, pelo ponto de não retorno. Olhar para a praia, lá atrás, e perceber que não dará mais para voltar. Respirar fundo, sentir medo e avançar na direção do horizonte. Não será hoje, não será desta vez, que vamos nos afogar.

Ivan Martins

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Os diálogos inexistentes...





Em vez de anjo da guarda, eu queria ter nos bastidores da minha vida uma equipe de roteiristas profissionais, com poder de mudar minha história.

Cada vez que estivesse a ponto de fazer algo definitivo, a cena seria congelada ao meu redor – todos parados como estátuas, no meio de um gesto ou de uma palavra – e eu ouviria ponderações sobre a melhor maneira de agir.

“Se você disser isso, ela irá embora em uma semana”, avisaria o roteirista, de prancheta na mão, ajeitando os óculos de acetato azul. “É isso mesmo que você deseja?” Mesmo hesitando, eu diria, “sim”, ao que ele, sorrindo, falaria em voz alta, para alguém oculto atrás das paredes. “OK, deixa correr!” E a cena teria sequência, para o bem ou para o mal.

Imagine de quantas dores e arrependimentos seríamos poupados se a vida nos desse essa pequena oportunidade. Os roteiristas saberiam o que as alternativas de futuro nos reservam e ajudariam, com pequenas advertências e empurrões, a tomarmos o caminho mais divertido até o final feliz.

Só que as coisas não são assim.

A gente lida todos os dias com situações que vão afetar o resto da nossa vida, armados com limitada inteligência, pouca experiência e o nosso temperamento, que tanto ajuda quanto atrapalha. Sempre sob pressão do tempo.

Ninguém nos dá meia hora para reagir a um insulto ou responder a uma pergunta simples: você me ama? A resposta tem de vir na hora, precisa e certeira, ou adeus, pode esquecer. É duro tomar decisões com a realidade em movimento, mas é isso que nos cabe.

Por causa da pressa e do improviso, sinto que a minha vida é uma orgia de conversas inacabadas.

Outro dia, faz pouco, terminou um grande amor, e ainda acho que não disse tudo, que não expliquei o suficiente. Todos os dias me pego conversando com quem passou pela minha vida sem ouvir a frase verdadeira, o pedido sincero de desculpas, a confissão absoluta, a declaração arrebatada, a ironia cortante, o cala-boca contumaz.

Os diálogos inexistentes me perseguem como uma matilha de cachorros de rua.

Uma mulher que eu amei, e que já não me amava, disse que falava comigo todos os dias. Em silêncio, no trabalho. Em voz alta, em casa. Comigo acontecia o mesmo. Meus diálogos com ela se estendiam noite adentro, cheio de idas e vindas, labirínticos e nostálgicos. Eu precisava dizer coisas que não tivera coragem ou perspicácia de dizer ao seu tempo. E as dizia. Às vezes, no meio de um sonho, ainda digo. Até acordado penso em frases poderosas que refariam fatos e removeriam o tempo e os sentimentos. Frases que nunca serão ditas.

Outro dia, sentada no sofá de casa, alguém me lembrou de outras conversas que jamais ocorrerão: entre pai e filha, entre amiga e amigo, mesmo entre irmãos que se amam. No coração das relações mais íntimas moram palavras terríveis, que nunca serão pronunciadas. Para quê? A verdade tem o dom de destruir, revelando o oposto de nossos afetos. Melhor calar a boca.

No interior das relações amorosas, ocorre o contrário: o silêncio nos consome. As frases que não são ditas se acumulam e impedem a circulação dos sentimentos. As pessoas se deitam lado a lado, caladas, noite após noite, cheias de queixas e ressentimentos. As manchas de silêncio tornam a relação irrespirável.

É preciso falar, portanto. É preciso explicar, corrigir, alertar, reclamar, exigir. Soluçar, também. As conversas nos salvam de nós mesmos.

Morro de medo das pessoas que andam pelas ruas falando sozinhas. É como se as coisas não ditas tivessem se apossado delas. Algumas gritam nos viadutos na direção dos carros. Outras falam baixinho, numa espécie de monólogo delicado. Todas conversam, contam, argumentam com alguém que não está mais lá, mas segue presente de alguma forma. A mente dos malucos está presa aos diálogos e decisões passados.

Por isso eu queria uma equipe de redatores a minha disposição, permanentemente.

Se eu me calasse, permitindo por raiva ou teimosia que coisas boas se estragassem, eles diriam: pare com isso, não seja criança, acerte as coisas, já! Se eu agisse com indiferença pelos sentimentos dos outros, eles também congelariam a cena. Diriam: “Olhe, veja como ela está sofrendo, abrace-a!”. Quando eu me omitisse por medo, quando eu me calasse por cautela, quando eu resolvesse gritar na hora errada, com a pessoa errada, com o amor da minha vida, me interromperiam: “Não faça isso! Não seja covarde! Não despeje nos outros as suas frustrações!”.

Na falta dessa equipe de apoio, vou me virando sozinho. Falo com a analista, converso com os amigos, divago em voz alta na companhia de Carlota e Elizabeth, minhas gatas. Sempre depois dos fatos consumados, infelizmente. Sempre olhando o retrovisor. Esta é outra realidade imutável: podemos lidar apenas com o que já passou. A gente vive, erra, pensa e (quem sabe?) aprende a não se afogar novamente nas palavras: as ditas e as não ditas.

Ivan Martins

domingo, 26 de junho de 2016

A grama do vizinho...




Ao amadurecer, descobrimos que a grama do vizinho não é mais verde coisíssima nenhuma.

Estamos todos no mesmo barco.

Há no ar certo queixume sem razões muito claras.

Converso com mulheres que estão entre os 40 e 50 anos, todas com profissão, marido, filhos, saúde, e ainda assim elas trazem dentro delas um não-sei-o-quê perturbador, algo que as incomoda, mesmo estando tudo bem.

De onde vem isso? Anos atrás, a cantora Marina Lima compôs com o seu irmão, o poeta Antonio Cícero, uma música que dizia:

“Eu espero/ acontecimentos/ só que quando anoitece/ é festa no outro apartamento”.

Passei minha adolescência com esta sensação: a de que algo muito animado estava acontecendo em algum lugar para o qual eu não tinha convite. É uma das características da juventude:

considerar-se deslocado e impedido de ser feliz como os outros são, ou aparentam ser. Só que chega uma hora em que é preciso deixar de ficar tão ligada na grama do vizinho.

As festas em outros apartamentos são fruto da nossa imaginação, que é infectada por falsos holofotes, falsos sorrisos e falsas notícias. Os notáveis alardeiam muito suas vitórias, mas falam pouco das suas angústias, revelam pouco suas aflições, não dão bandeira das suas fraquezas, então fica parecendo que todos estão comemorando grandes paixões e fortunas, quando na verdade a festa lá fora não está tão animada assim. Ao amadurecer, descobrimos que a grama do vizinho não é mais verde coisíssima nenhuma. Estamos todos no mesmo barco, com motivos pra dançar pela sala e também motivos pra se refugiar no escuro, alternadamente.

Só que os motivos pra se refugiar no escuro raramente são divulgados.

Pra consumo externo, todos são belos, sexys, lúcidos, íntegros, ricos, sedutores.

“Nunca conheci quem tivesse levado porrada/ todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo”.

Fernando Pessoa também já se sentiu abafado pela perfeição alheia, e olha que na época em que ele escreveu estes versos não havia esta overdose de revistas que há hoje, vendendo um mundo de faz-de-conta. Nesta era de exaltação de celebridades – reais e inventadas – fica difícil mesmo achar que a vida da gente tem graça. Mas, tem. Paz interior, amigos leais, nossas músicas, livros, fantasias, desilusões e recomeços, tudo isso vale ser incluído na nossa biografia. Ou será que é tão divertido passar dois dias na Ilha de Caras fotografando junto a todos os produtos dos patrocinadores? Compensa passar a vida comendo alface para ter o corpo que a profissão de modelo exige? Será tão gratificante ter um paparazzo na sua cola cada vez que você sai de casa? Estarão mesmo todos realizando um milhão de coisas interessantes enquanto só você está sentada no sofá pintando as unhas do pé? Favor não confundir uma vida sensacional com uma vida sensacionalista.

As melhores festas acontecem dentro do nosso próprio apartamento.

Martha Medeiros

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Que tal apertar o botão RESET?


Todo amor é uma forma de desamparo e perda de si mesmo. De um momento para o outro, nos tornamos vulneráveis. Querer demais o outro nos desequilibra, pondo em evidência a nossa insuficiência como indivíduos.
Todos já passamos por isso, em algum momento.
Apaixonados, deixamos de ser o que éramos e nos transformamos em gente mais frágil e feliz. Ao romper amarras, o amor nos lança ao mar revolto das expectativas. Damos adeus à segurança e olhamos a vida de forma nova, de longe. O que nela é essencial? O que realmente importa?
O ser amado é a resposta, e sobre ele não temos controle.
Desamparados por essa percepção, desmoronamos – e temos a chance de nos refazer. O amor, quando começa e quando acaba, na euforia do romance e na dor da separação, nos oferece um mundo novo, reavaliado.
Nosso olhar apaixonado não vê o que via antes. Ele se esvazia de certezas. Tudo ao redor parece incerto e ao mesmo tempo possível. A única porta fechada é o passado, para onde não se pode mais voltar. Tudo o que havia antes foi transformado.
O amor nos convida a apertar o botão RESET e recomeçar.
Entendem o que estou dizendo?
Há uma vida normal e uma outra vida, que se revela quando o véu da normalidade foi rasgado. Esse é o desamparo essencial. Ele nos desprotege, faz com que tudo pareça estranho, luminoso, hostil.
O desamparo amoroso nos desafia e nos assusta, exige providências. Há que viver urgentemente aquilo que nos acomete – e esse viver nada tem em comum com a vida anterior, cheia de cuidados.
O amor exige que a  gente se atire. Exige corar, exige expor o corpo ao risco. Amar exige coragem.
Percebem?
Também é possível viver o amor de forma comedida. Recusar o que ele nos pede. Ouvir o medo, refazer o cálculo, manter na mesma cesta o imponderável e o previsto. Ficar em vez de saltar.
É possível amar sem dar-se ao risco, como quem nada a 10 metros da praia. Mas é tão frustrante. E ao final tão impossível.
O gesto que não fizemos ontem nos será cobrado amanhã. Voltará como um fantasma a nos assombrar. No mundo dos sentimentos há um equilíbrio. Eu me preservo aqui, para sofrer amanhã de outra forma. Aqui me falta coragem, adiante sobrará arrependimento. Agora prevalece o cálculo, depois me invadirá a dor.
Entendem?
O desamparo do amor assusta, mas não poderia nos acovardar. Com a força dele podemos fazer coisas grandiosas. Expostos ao medo, essencialmente despossuídos, temos a chance de encontrar outras formas de ser. Podemos mudar nosso mundo interior. Quem sabe refazer o mundo que nos cerca. A cada gesto de atrevimento, se abrem novos horizontes.
Um homem apaixonado pode recriar a si mesmo. Uma mulher que ama pode inventar-se outra vida. Porque a vida anterior já não existe e aquilo que éramos não pode ser mais. 
Desamparados, quase livres, tentaremos ser felizes, reconstruindo o nosso mundo material e afetivo. Desamparados, quase felizes, experimentaremos a possibilidade de viver de outra forma. O amor é a porta que se abre. O desamparo, a queda que nos liberta.
Ao nosso redor existe o medo e o mundo. Dentro de nós, um monte de regras. Amar é desamarrar-se e prosseguir.
Ivan Martins

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

De casal é melhor...



A solidão é uma caixinha repleta de possibilidades, mas nenhuma delas equivale a um relacionamento apaixonado. A frase me ocorreu esta tarde, enquanto eu perambulava pelas ruas de Buenos Aires olhando os prédios antigos e as mulheres que o verão espalha nas calçadas da cidade. Mesmo contente, fui obrigado a lembrar que da última vez que estive aqui estava mais feliz, acasalado.

Existe algo profundo e benigno na nossa natureza que floresce apenas na presença do amor. Não falo de uma paixão sozinha e inventada, mas de uma atração correspondida, que nos permite desabrochar sem pressa e sem medo na presença do outro. Os dois se aceitam e se desejam, e por isso – exatamente por isso – podem se tornar pessoas melhores. Esse é o poder do amor.

Ao redor desse tipo de relação ocorrem pequenos milagres de física afetiva. Assim como a luz se curva na borda de um buraco negro, o ar que circunda os apaixonados vibra de forma distinta. Você olha Buenos Aires pelos olhos do seu amor e a cidade entra em suas narinas pela respiração suave dela. Por isso a memória nos castiga com comparações, anos depois. Algo nas nossas moléculas coteja o passado e o presente, e percebe a diferença. Existe uma felicidade em estar só e ser dono de si. Existe outra, maior, em estar voluntariamente acompanhado.

Falo por mim, naturalmente.

Neste exato momento, vendo a tarde se converter em noite atrás dos prédios velhos, sentindo o cheiro de azeite e carne entrar pela janela do apartamento, um outro ser humano talvez se sentisse pleno. Eu sorrio e agradeço pela graça deste dia, mas o meu coração pede mais – que, ao meu lado, a mulher que eu amo espere sem pressa que eu termine de escrever, para sairmos pelas ruas de San Telmo a caminhar sob a Lua. Ela, de vestido florido e sandálias, sorrindo para mim como se eu a tivesse resgatado de um planeta de mulheres perdidas. Eu, embasbacado pela presença dela, tremendo internamente de alegria, temeroso, apenas, de que o mundo repentinamente se acabe, no auge da minha felicidade.

Lembrei de um verso da peça do Teatro Oficina que eu vi na noite de Ano Novo. Ele dizia assim: “Lá em cima, a Lua cheia. Aqui embaixo, a rua cheia”. Assim são os nossos vastos sentimentos nas noites de verão. A vida cheia de promessas clama por se materializar na forma de um parceiro ou parceira. Ele será um ponto de chegada e recomeço. Sem ele – sem a companhia da mão que ampara e acaricia – a vida escorre e se dissipa, apesar dos momentos cintilantes. O amor cristaliza os instantes e os eterniza. Faz com que, dentro de nós, o tempo seja suspenso, lançando para longe a ideia da morte. O amor nos faz sentir imortais, porque divinos.

A solidão, no entanto, é uma caixa repleta de surpresas. Dentro dela brotará o novo amor, capaz de nos redimir. A você e a mim. Em São Paulo, Buenos Aires ou Belo Horizonte.Se tivermos sorte e uma gota de coragem.

Ivan Martins

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

10 coisas que aprendi com 2015...



Ouço todo mundo reclamando de que este ano não foi fácil. Eu concordo inteiramente. Aconteceu de tudo, e muita coisa foi ruim. Para mim, foi um ano de perdas como eu nunca tinha tido. Para todos, parece ter sido um ano de grande confusão – aquilo que os chineses chamavam, com enorme ironia, de “tempos interessantes”. De alguma maneira sobrevivemos e, naturalmente, aprendemos com isso. Eu mesmo aprendi muita coisa. Sobre morte, sobre separação, sobre relações passageiras e sobre o papel dos bichos na nossa vida. Muitas dessas coisas, como dizia um antigo chefe meu, são novidades apenas para mim. Outras, podem ser novas para mais gente. Tomara que haja mais do segundo caso. Dizem que a gente nunca aprende com a experiência dos outros, mas eu sou um pouco mais otimista. Se o meu annus horribilis não for capaz de ensinar, talvez consiga distrair. Vocês me digam:

1. Mãe faz muita falta. Não adianta ser um adulto grisalho. Não importa que a sua mãe tenha 87 anos. Quando ela morre, abre um buraco na sua biografia. Com ela, vai parte da criança que você foi: aquela que a amava de forma inocente e absoluta, e que se sentia amada por ela de maneira incondicional. Quem o amará dessa forma novamente? Além da dor simbólica e da orfandade assustadora, existe a ausência física. Nem faz um ano que a minha morreu, mas já me peguei várias vezes pensando em ligar para ela e perguntar besteiras, como eu sempre fazia. Como se faz panqueca, mãe? É razoável pagar trinta reais numa barra de calça? (“Não! Venha aqui que eu faço”). Os almoços semanais na casa dela eram regados a uma conversa nostálgica que apenas os velhos sabem manter. Ela falava da década de trinta do século XX - quando foi menina – como se fosse a semana passada, com a vivacidade e a fúria da memória implacável. Carregava galhardamente os mortos dela (meus avós, meus tios) e dividia a história deles comigo. É assim que a gente faz a conexão com o passado: há uma narrativa familiar que vem no leite e que nos ajuda a entender o mundo de onde surgimos. Eu tive sorte, perdi minha mãe adulto. Tivemos muitos anos para fazer a passagem do bastão. Agora eu guardo as memórias, algumas das quais passarei aos meus filhos. Outras se perderão, irremediavelmente. É triste, e temo que fique ainda mais triste à medida que o tempo passe. A presença da mãe ausente não diminui, só cresce.

2. A gente nunca aprende a lidar com separações. Cada vez que um grande amor acaba, temos de viver tudo de novo. A vida perde a graça, os olhos embaçam. O luto – esse é o nome do sentimento – é uma tinta que se agarra aos nossos dedos e se recusa a sair. Ela vai manchando tudo o que a gente toca. Temos de lutar contra essa dor todos os dias, e às vezes ela leva a melhor. Então nos recolhemos à nossa infelicidade e torcemos para que a noite seja breve. No fundo de nós, sabemos que uma hora a amargura vai passar, mas, verdadeiramente, não desejamos que passe. Superar o luto significa deixar de amar, e isso não parece razoável. Livrar-se internamente do outro é o mesmo que admitir que a possibilidade de estar com ele se esgotou. Outras possibilidades surgirão, naturalmente, mas reconhecer que aquele caminho se fechou é intolerável. Não queremos ser felizes de outra maneira. Queremos a vida com aquela única pessoa, não qualquer outra forma de vida. Essa é a armadilha sentimental das separações: não desejamos nos livrar da dor, porque há nela um germe de esperança. Entender esse paradoxo não resolve o problema, mas ajuda.

3. Mudar de vida é bom, mas custa. A gente não percebe o quanto nosso equilíbrio depende das rotinas de trabalho que nos incomodam. Quando nos vemos livres dela, o mundo fica subitamente inquietante. É preciso inventar uma vida nova, e uma nova rotina que faça sentido. Em setembro de 2015 eu comecei a fazer isso. Estou feliz, mas ainda é estranho. Lamento, às vezes, não ter começado antes. A esta altura já teria criado uma nova disciplina interior. Ela é a chave de tudo. Antes, havia uma disciplina externa, ditada pelo ritmo da empresa. Agora, a disciplina tem de estar em mim, assim como o estímulo e a crítica. Não é fácil ser chefe de si mesmo, mas há uma geração de inteira de gente criativa vivendo assim. A liberdade é assustadora, mas traz promessas cintilantes de auto realização.

4. A ternura das pessoas que passam é essencial. Nossa vida não é feita somente de relações duradouras. Há gente que atravessa uma rua conosco, caminha ao nosso lado uma avenida, e pronto: deixa um perfume que não será esquecido. Não era para ser, não era para durar, mas isso não torna as pessoas menos essenciais. No longo vazio que sucede as separações, esses encontros são como pontos de luz. Eles marcam a vida com a intensidade ou a delicadeza das coisas efêmeras, que têm a sua própria forma de beleza. Não falo de sexo casual apenas. Falo do encontro temporário de corpos e de sentimentos, que nos dá a sensação de plenitude. Depois ela se dissipa, como é da natureza das coisas que passam, abrindo o nosso coração e o preparando para as coisas mais perenes que virão. Por esses encontros, que eu não sabia direito que existiam, e que não tinham nome no meu vocabulário, a minha comovida gratidão.

5. Hábitos podem ser mudados. Mesmo aqueles antigos, que a gente cultiva a vida inteira, podem ser postos de lado em nosso benefício. Este ano eu parei de beber, por exemplo. Posso tomar um vinho ou um copo de cerveja eventualmente, mas o hábito foi posto de lado. As razões dessa mudança nem eu mesmo entendo, mas noto que ela me fez bem. O prazer da bebida tornou-se eletivo, não social e automático. Acho que isso pode valer para tudo que a gente faz distraidamente, por imitação ou por descaso consigo mesmo. Podemos descobrir que hábito e prazer não são a mesma coisa.

6. A vida interior precisa de atenção. A frase é óbvia, mas a gente não aplica. Vivemos um dia depois do outro, entre a depressão e a euforia, sem nos questionar sobre a natureza dessas sensações. Nos parece, o tempo inteiro, que tudo que nos afeta vem de fora. O trabalho, a família, o amor, a droga da política. Mas não é verdade. Todos nós convivemos com um grau de sofrimento interno elevado, quase insuportável às vezes. E não damos a isso a atenção que deveríamos. Este ano, por um acaso generoso, eu fui posto em contato com as ideias meio budistas, meio indianas e algo freudianas do guru Sri Prem Baba. O resultado desse encontro é que eu voltei a refletir, como não fazia desde a adolescência, sobre os meus estados mentais. De onde vem a ansiedade? Por que tamanha inquietação? Que angústia e essa que vira e mexe me aflige? Na cultura ocidental, a gente resolve isso procurando um psicólogo ou psicanalista. Na tradição oriental, busca-se um mestre que ensine a meditar e refletir sobre a origem dos sentimentos dolorosos - e ajude a eliminá-los. Como eu tenho dificuldade pessoal com a ideia de seguir um guru, tenho lido sozinho sobre budismo e espiritualidade, e tenho tentado, precariamente, aprender a meditar – uma arte sutil que exige o oposto de tudo que a gente aprendeu a fazer em casa e na escola. Seu objetivo é separar o fluxo de sentimentos e pensamentos daquilo que os orientais chamam de consciência. Por trás disso, está a ideia assustadora (mas linda) de que nós não somos iguais aos nossos pensamentos e sensações. O cérebro produz essas coisas o tempo inteiro, compulsivamente, e nós sofremos por nos identificarmos demais com elas. Não é curioso? Quem quiser saber mais sobre isso, leia Despertar - um guia para a espiritualidade sem religião, do Sam Harris. Esse livro ajudou a melhorar o meu ano.

7. Eventos públicos interferem na vida privada. Este ano, com tudo o que aconteceu no Brasil, experimentei uma tremenda angústia. Lava Jato, impeachment, crise econômica. Não houve como se isolar das notícias terríveis. Todos os dias o jornal me deixava furioso ou prostrado. As conversas no bar e no trabalho terminavam em tom de exasperação. Nunca discuti tanto, e de forma tão inútil, nas redes sociais. Em vários momentos, tive a impressão de que o Brasil que eu vira emergir da ditadura nos anos 1980 virava farinha. Havíamos entrado na máquina do tempo e ela nos levava de volta a uma versão perversa de 1964. Sentia todas as manhãs, quando abria a internet, que as coisas se encaminhavam para um desfecho farsesco e injusto, sem que eu pudesse fazer nada além de assistir, apoplético. Um horror, capaz de afetar o meu sono e perturbar o meu escasso apetite. Felizmente, o ano vai terminando em uma nota alvissareira, apesar dos playboys ofendendo o Chico Buarque na saída do restaurante. Que horror aquele vídeo! As pessoas foram às ruas em defesa da legalidade e o STF pôs um limite ao reinado de Eduardo Cunha. A balança de alguma forma se equilibrou, embora o futuro ainda seja incerto. 2015 ficará na minha memória como o ano em que não foi possível viver fora da crise.

8. Engajamento é essencial. Cada vez mais, sinto que a gente precisa fazer algo pelo mundo ao redor. A vida não pode se reduzir, mesquinhamente, a acumular dinheiro e sucesso e a cuidar da nossa família, cheios de medo. No final deste ano, quando começou o movimento de ocupação das escolas em São Paulo, vi a alegria com que alguns dos meus amigos – pais de alunos, alguns; vizinhos das escolas, outros – se mexeram para ajudar os adolescentes. Foi uma coisa bonita, um reencontro com as biografias deles. As pessoas cozinharam, deram aulas, participaram de marchas e, ao final, sentiram-se parte da vitória dos meninos e meninas, que conseguiram impedir o fechamento de quase uma centena de escolas estaduais. Tenho certeza que nós seríamos mais felizes, e viveríamos num mundo melhor, se saíssemos regularmente da nossa vida privada para fazer algo pelos outros. No final, descobriríamos que os outros somos nós.

9. Bichos podem ser fundamentais. Carlota e Elizabeth, as minhas gatas, foram parte importante deste ano tumultuado. Quando as coisas ficaram difíceis, elas estavam lá para distrair e receber afeto. Levantar de manhã, limpar a caixinha e dar comida a elas, ou brincar com fitas e bolinhas, fazendo com que elas corram e se exercitem, são atividades prazerosas. Cuidar dos bichos me faz sentir melhor. Os gatos, ao contrário dos cachorros, não respondem da mesma forma ao carinho dos humanos, mas não importa – eles podem ser objetos da nossa afeição, mesmo de cara emburrada ou indiferente. Tenho um amigo que mora sozinho e adotou, recentemente, um cachorrão amoroso e estabanado. É impressionante como o cão fez bem para ele. Melhorou o humor do amigo e aumentou o seu prazer de estar em casa. A conclusão é óbvia: os bichos fazem bem aos humanos, sobretudo para aqueles que moram sozinhos. 2015 não me transformou num animal lover, mas fez com que eu revisse meus preconceitos em relação a eles.

10. Sentir-se perdido é o primeiro passo. Quando a vida está certinha, a gente boceja de tédio. Quando tudo sacode e desaba, morremos de medo. Estar num lugar é desejar o outro, e nos intervalos entre lá e cá nos sentimos perdidos. Bem perdidos. Eu estava desacostumado ao sentimento, mas este ano fui obrigado a percebê-lo como parte da vida. Ao menos de uma vida que se renova. No meio das mudanças, voluntárias ou não, sempre aparecem sentimentos de perplexidade e desorientação. Qual é mesmo o caminho a seguir? Qual a coisa certa a fazer? Há que tomar decisões e tentar. Se for o caso, arrume uma bússola. A minha costumava ser a psicanálise. Hoje em dia eu não sei. Mas sei, com toda certeza, que há vários caminhos possíveis, e que eles levam a lugares fascinantes. Sei também, porque aprendi, que o primeiro passo começa sempre com a sensação de estar perdido. É assustador. É libertador. Talvez seja essencial.

Ivan Martins