domingo, 22 de julho de 2012

O encurtamento das durações ...




Quanto tempo leva para superar a dor da perda? Quanto tempo para digerir uma rejeição? Absorver que um sonho terminou? Esquecer uma frustração? Uma mágoa de infância? Um trauma? Uma demissão? Os psicanalistas provavelmente responderão que é preciso respeitar o ritmo de cada um. Há quem seja rápido na retomada da vida, e há os mais lentos, que necessitam de um acompanhamento mais intensivo. Não há como decretar: dois dias, dois meses, dois anos. 
Só que a maioria da população não procura psicanalistas. Não têm dinheiro pra isso, e muito menos disponibilidade. As pessoas não podem parar no meio do dia para se consultar, pois trabalham insanamente, e tampouco possuem tempo para, segundo elas, desperdiçar. Sabe-se que análises são demoradas, que buscam e rebuscam nossa intimidade, que não é num estalar de dedos que se atenuam as dores internas. E qualquer coisa que demore, hoje em dia: não, obrigada.
Que inquietação.  
O passado e o futuro são dois períodos que já não interessam: cultua-se o presente como nunca antes. O que vale é este momento, agora, o instante vivido. Tudo digitalizado, virtual, instantâneo. Quem ainda espera dias por uma resposta? Meses por uma solução?
Na vida burocrática, governamental, a demora ainda é praxe e se vale da morosidade para arrecadar mais e mais dinheiro, mas no plano pessoal, encurtaram-se as durações. Vive-se tudo de forma mais compacta, o começo e o fim mais próximos do que jamais foram. E acabamos impregnados dessa urgência, dessa vontade de resolver todas as tranqueiras com a maior agilidade possível.
Porém, há tranqueiras e tranqueiras.  
Você consegue resolver pendências profissionais de imediato, consegue tomar decisões práticas sem se alongar: parabéns. Salve a produtividade. Mas não foram essas as questões levantadas no início desse texto. Falávamos de tristezas, de cicatrizar feridas, de aceitar o destino que nos coube, de assimilar mudanças.
Sentimentos não são regidos por megabytes por segundo, não se vinculam a relógios, não obedecem a leis objetivas – é o curso da natureza que manda. E a natureza é surda e cega para o desatino. Exige a introspecção devida, sem a qual nada se resolve, só se mascara.
Diante da dor emocional, só há uma ordem a respeitar: paciência. De nada adianta inventar alegrias fajutas e se oferecer para a cobiça do mundo sem antes estar com a alma serenada e forte. É preciso saber esperar, do contrário a gente se atrapalha e só reforça a miséria existencial que preenche as madrugadas.
Basta de tanta gente evitando pensar, evitando chorar, evitando olhar para dentro de si mesmo, sorrindo de um jeito tão triste que só faz demorar ainda mais o reencontro com o sorriso verdadeiro – aquele aguardando a hora certa de voltar.
 
 
Martha Medeiros

domingo, 15 de julho de 2012

Afinidades essenciais...




Quem acompanha esta coluna sabe que eu sou obcecado pela questão das afinidades. Vira e mexe, com desculpas diferentes, eu volto a esse tema. É que me parece, cada vez mais, que a forma como a gente escolhe os parceiros, ou como cada um de nós estabelece vínculos com eles, define a nossa vida. Ao menos a nossa vida afetiva, que é parte enorme de todo o resto.

Quando a gente é muito jovem, ser amado parece ser o problema essencial da nossa existência. A gente se apaixona com tanta facilidade, e com tanta frequência, que encontrar alguém que retribua na mesma intensidade parece a parte mais difícil da vida. À medida que o tempo passa, se você for honesto com você mesmo, vai perceber que a parte difícil da vida é gostar por muito tempo de alguém. Vai notar que as pessoas passam, algumas mais legais do que as outras, mas que apenas algumas delas, muito poucas, estabelecem com você um vínculo essencial. Essas pessoas que ficam são especiais – e a grande pergunta é por quê?
Os cientistas e os filósofos dizem que há perguntas boas e perguntas ruins. As ruins são aquelas cujas respostas não levam muito longe no caminho do entendimento. As perguntas boas, ou certas, são aquelas que abrem horizontes e direcionam a nossa curiosidade em direção ao que realmente importa. Por que algumas pessoas ficam na nossa vida, e outras, não, é, para mim, uma dessas perguntas que fazem a diferença.
Na semana passada eu voltei a pensar nisso por causa do futebol.
Me desculpem os que não têm qualquer interesse pelo assunto ou se irritam à simples menção da palavra time. Eu, sem ser fanático, me envolvo emocionalmente com esse negócio de bola e camisa, e já descobri, a contragosto, que posso ter uma semana pior ou melhor a depender do resultado do meu time. A semana que passou, por exemplo, foi maravilhosa. Desde quarta-feira anda difícil tirar do rosto um sorriso de profundo e injustificado contentamento. O sentimento não resiste a nenhuma análise lógica, mas está aqui, e, de alguma forma subjetiva, e ao mesmo tempo muito concreta, melhora substancialmente a minha vida. Como eu, milhões de outros.

Como seria viver com uma mulher que não tivesse qualquer empatia com esse sentimento? Se ela odiasse o meu time, mas gostasse de futebol, poderia achar dentro dela entendimento e respeito pela minha comoção. Funcionaria, como já funcionou. Sendo corintiana, como é, foi o melhor dos mundos: voltar para casa, embriagado de alegria, e achar alguém feliz como eu, de braços abertos. Mas poderia também ser ruim. Poderia ser alguém – existem muitas – que genuinamente desdenha esse tipo de coisa e me tratasse como idiota. Nesse caso, minha semana de alegria grátis talvez se resumisse a um espasmo constrangido de contentamento, ou virasse irritação e discussão. Quando não há afinidade e compreensão, qualquer coisa é motivo de briga. Até alegria. 
O importante dessa história boba, eu acho, é perceber que na nossa vida tem de haver gente que nos entenda e que tenha conosco um grau elevado de empatia. Sim, podemos conviver com diferenças. Claro, personalidades diferentes nos desafiam. Mas isso tudo fica melhor na escola, no trabalho e na vida social. Na intimidade a coisa é outra. Você não quer um olhar de total incompreensão cada vez que certo tipo de filme levá-la às lágrimas. Nem quer ter de dar explicações quando tiver vontade de deitar no colo do sujeito no sofá da sala e ficar quieta, preferencialmente recebendo um cafuné. Se você é esse tipo de pessoa, ele tem de ser o tipo de cara que entende e participa. Ou então não rola.
Minha impressão, pelo acúmulo de experiências, é que nossos parceiros duradouros tendem a sair de um espectro estreito de personalidades, valores e visão de mundo. Para mim é um sinal saudável – e uma pista importante – que a gente repita a preferência por certos traços na hora de escolher pessoas. É que por trás dessas coisas que a gente vê há outras coisas, mais profundas, que nem sempre se percebem, como família e história pessoal. Elas definem quem cada um de nós é, e qual a nossa capacidade de viver juntos. Esse tipo de coisa não se improvisa e nem se ignora. É como um time de futebol: para nos dar prazer de verdade, tem de ser parte da nossa história. Ou então não tem graça nenhuma.

Por Ivan Martins

sábado, 7 de julho de 2012

Dormir de conchinha...


Proximidade é coisa que se aprende. Demora algum tempo para que a gente relaxe na presença do outro e extraia desse contato o prazer e a paz profundos que a intimidade física proporciona. Quando isso acontece, a gente descobre, invariavelmente, que está dormindo de conchinha.

Não sei o que existe nessa posição que a torna tão universalmente afetuosa. Pense nos filmes que você viu ou nos romances que você leu: quando o narrador da história quer sugerir que o casal está muito próximo ou apaixonado, faz com que ele a abrace pelas costas e os dois adormeçam “como duas colheres”, que é o jeito como os americanos descrevem essa posição. Talvez exista a mesma expressão em japonês, mongol ou na cultura tuaregue, do norte da África. Eu não me espantaria. Sendo o corpo humano igual no mundo inteiro, é provável que diferentes culturas usem as mesmas formas corporais para demonstrar carinho e dividir conforto.
No livro Tristes trópicos, do antropólogo francês Claude Levis-Strauss, já morto, há um momento em que ele descreve como os índios nômades nambikwara, do norte do Mato Grosso, (cuja cultura material era tão pobre que nem redes ou cabanas eles tinham), dormiam aglomerados em volta da fogueira, nus sobre o chão nu, os casais abraçados em conchinhas para se esquentar e proteger. Talvez venha daí, do tempo que éramos tão selvagens e tão pobres que só tínhamos o nosso próprio corpo, e o corpo dos outros como nós, nossa disposição ancestral de abraçar pelas costas e encaixar o rosto nos cabelos da mulher querida – para esquentar e proteger.
Apesar do progresso e da nossa imensa prosperidade material, acho que às vezes ainda nos sentimos como índios nambikwara. Ainda despertamos assustados, no meio da noite, assaltados por medos e inquietações tão humanas, tão profundas, que nem sabemos de onde eles vêm. Nesses momentos de vulnerabilidade, quando nos sentimos minúsculos e irremediavelmente solitários, abraçamos o corpo da parceira ou do parceiro como se ele fosse um refúgio, talvez o último, da nossa integridade ameaçada.
Mas isso, como eu disse no início, leva tempo. Mesmo o instinto que parece se esconder atrás do abraço de conchinha precisa ser aprendido. Lembro de um tempo, quando eu era garoto, que a proximidade de outra pessoa na hora do sono não era assim tão confortável. Aplacado o desejo, eu procurava distância e liberdade de movimentos. Só aos poucos fui percebendo que havia naquele jeito de ficar um aconchego e uma calma que eu não conhecia. Como tantos dos gestos que compõem o nosso repertório afetivo, o abraço cheio de sono e de confiança teve de ser aprendido.

No interior das relações ocorre o mesmo processo de experimentação e aprendizado. Para muitos, essa coisa de abraçar não funciona logo de cara. É preciso tempo e proximidade para que o gesto se torne natural. Há uma parceria silenciosa nos nossos enlaces que precisa ser construída. É inútil apressá-la e talvez haja relações em que elas nunca se manifestem. Talvez por causa do temperamento dos envolvidos. Talvez pelo caráter mesmo do que existe entre eles.

Sei que algumas pessoas recusam até de forma inconsciente esse tipo de contato afetuoso. Elas o associam a acomodação. Escolhem manter a relação no que eu chamo de estágio do beijo, quando a fome e a curiosidade pelo outro ainda não foi saciada e parece que nunca será. Nesse momento sublime dos agarros, o acesso ao corpo do outro é 100% erótico. Apenas mãos, saliva, palavras. Tem gente que se embriaga disso e não quer sair. Evita o passo seguinte, em que o barato físico pelo outro dá lugar a outro tipo de coisa, mais suave e mais silenciosa – e os beijos famintos são substituídos, sem que se perceba, pelos abraços de conchinha. Não sei se alguém já fez um estudo científico sobre isso, mas parece que a convivência simultânea entre beijos famintos e abraços de conchinha é impossível no longo prazo. Vocês me digam.
Da minha parte, sinto que há opções a fazer e que a gente as faz todos os dias, em favor do abraço de conchinha. Passada a turbulenta adolescência, tendemos a construir relações estáveis. Nelas, os abraços cheios de sono e intimidade são mais frequentes que os beijos apaixonados. Há uma troca que parece refletir as nossas necessidades profundas. Deixamos de lado a paixão incandescente pelo afeto profundo. Trocamos tesão por amor. Claro, essa não é uma solução inteiramente satisfatória. Nem definitiva. Mas parece ser aquela que de forma mais frequente atende a nossa insondável, dolorosa e contraditória humanidade – a mesma que nos acorda no meio da noite, inquietos, e nos faz procurar, no escuro, o calor e o conforto do corpo do outro.

Por Ivan Martins