sábado, 16 de março de 2013

A força do acaso...




Tem gente que acredita em destino. Eu acredito que é o acaso quem rege a nossa existência de forma quase absoluta.
Penso no encontro acidental dos nossos pais, no desejo que poderia não ter surgido entre eles, no espermatozóide que chegou à frente de milhões de outros na corrida mais importante das nossas vidas. Quanto disso foi planejado? Nada, assim como costumam ser acidentais os nossos próprios encontros amorosos, a concepção dos nossos filhos e as circunstâncias imprevistas que nos levam a fazer amigos importantes, escolher carreira e definir a cidade onde iremos morar.
O imprevisto invade a nossa vida enquanto no debruçamos cheios de planos sobre o calendário do ano que vem.
Acho o acaso tão importante que defendo que ele deveria ser incorporado aos nossos critérios de eleição afetiva. Não adianta observar os candidatos a parceiros apenas em situações controladas, como se o amor fosse um experimento de laboratório. Se o sujeito a convidou para jantar, teve três dias para arranjar as coisas e aparece (cheiroso e bem vestido) com uma rosa vermelha e reservas para o bistrô mais concorrido da cidade, ponto para ele por Organização & Método – mas isso não deveria encerrar o período de observação.
Para saber quem realmente é o cara, melhor seria estar com ele na noite em que o pneu do carro furasse na Marginal. Ele respira fundo, sorri para você e desce para resolver o assunto ou, tudo ao contrário, se põe a dizer palavrões em voz baixa e reclamar que não deveria ter saído de casa – culpando você, indiretamente, pelo contratempo?
Qualquer mulher pode ser encantadora num fim de semana de outono no Rio de Janeiro em que não haja uma brisa fora de lugar, mas como ela reage quando a companhia aérea perde as malas e vocês ficam com a roupa do corpo em Buenos Aires, num frio de 11 graus? Eu gostaria de saber essas coisas antes de me apaixonar.
Se o futuro pudesse ser desenhado numa planilha Excel, o melhor a fazer por si mesmo seria conquistar a analista de sistemas mais atraente da empresa e fazer dela a mulher da sua vida, mas nós sabemos que as coisas não são tão simples. Num mundo dominado pelo acaso, é importante ter ao seu lado alguém capaz de lidar com os imprevistos e as frustrações, porque eles vão se repetir o tempo inteiro. Planejar não é suficiente para ser feliz. 

Quando o inesperado se intromete e atrapalha os nossos planos, então testamos o nosso temperamento e o de quem nos acompanha – além de uma coisinha de enorme importância chamada compatibilidade.
Sexta-feira passada eu tentei ir à praia. Reservei pousada, abasteci o carro e caí na estrada com a mulher, no horário em que o trânsito arrefece em São Paulo. Tudo planejado. Quatro horas depois, estava no pé da Serra do Mar metido no maior congestionamento da minha vida, com a chuva caindo torrencialmente, água subindo e o rádio contando histórias de morte e quedas de barreira. Depois de momentos de quase pânico, decidimos sair da estrada e procurar refúgio em Cubatão, uma das cidades menos turísticas do mundo ocidental.
Rodamos pelas ruas semi-alagadas e desertas, batendo à porta dos poucos hotéis, todos muito simples e totalmente tomados pelos refugiados da estrada. Ao final, fomos acolhidos no Lopes, que fica em frente à delegacia da cidade. De início não havia vagas, mas permitiram gentilmente que passássemos a noite no sofá da recepção, protegidos da chuva, das enchentes e dos ladrões que agem nos congestionamentos. Nas circunstâncias, estava ótimo. Duas horas depois, surgiu algo ainda melhor – um sujeito que alugara a suíte do Lopes para uma farra na madrugada não apareceu, e nós herdamos as acomodações. Com sauna, hidromassagem, TV a cabo e meio ar condicionado. Um luxo.
Ali passamos um longo fim de semana. Houve passeios a pé, compras no comércio alagado da cidade, pizza de brócolis com catupiry e uma sessão de cinema no complexo do Parque Anilina. Vimos o novo filme do Bruce Willis, dublado. Eu gostei, minha mulher disse que não iria comentar. Voltamos a São Paulo às 6 da manhã de domingo, quando a estrada reabriu. Nós havíamos sobrevivido, e o casamento também.

Eu consigo pensar em meia dúzia de mulheres com quem essa mesma situação teria virado um pesadelo. Posso ver uma delas reclamando e me recriminando até que eu perdesse a cabeça e fosse parar algemado na delegacia em frente ao hotel, depois de um acesso de loucura. Sou capaz de enxergar uma outra, sentada à beira da cama, empurrando para trás os cabelões e dizendo para a amiga no celular: “Cubatão, você acredita? Cubatão... Não, o carro dele não passa na enchente. Lembra que ele acha os jipões ridículos? Pois é”. Essa conversa não aconteceria dessa forma porque não houve sinal da TIM em Cubatão no fim de semana, mas a cena é totalmente plausível.

Não estou aqui fazendo críticas a certos tipos de pessoas. Acho, na verdade, que a culpa pelo clima detestável que se cria durante as crises não é de cada uma das partes, mas da interação ruim entre elas, a tal da compatibilidade. Diante do mesmo perrengue, mas em outra companhia, a pessoa funcionaria bem. É uma questão de quantidade de afeto e de respeito, claro, mas é também uma questão de afinidade. Se os modos do outro o irritam normalmente, isso não vai melhorar sob a pressão de uma crise. Quando a crise acontece, portanto, é um bom momento para observar seus sentimentos: você tem vontade de proteger o outro, fica feliz por ele estar ali, ou gostaria, do fundo do coração, que ele e o seu jeito professoral desaparecessem e você pudesse chamar um amigo querido? É importante saber.

Da minha parte, fico feliz por ter passado pelo teste de Cubatão. Ela reforçou minha convicção de que a vida, embora tenha de ser planejada no dia a dia, é, essencialmente, algo sobre o qual eu não tenho controle. Só posso me assegurar, precariamente, que quando o acaso tomar as rédeas eu tenha ao meu lado alguém capaz de rir comigo, de me dar conforto e de oferecer aquilo que homens e mulheres têm oferecido uns aos outros por milhares de anos – uma pequena chama de afeto capaz de iluminar os nossos corações cheios de medo e de aflição.


Ivan Martins

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Sons que confortam...

Eram quatro da manhã quando seu pai sofreu um colapso cardíaco. Só estavam os três na casa: o pai, a mãe e ele, um garoto de 13 anos. Chamaram o médico da família. E aguardaram. E aguardaram. E aguardaram. Até que o garoto escutou um barulho lá fora. É ele que conta, hoje, adulto: Nunca na vida ouvira um som mais lindo, mais calmante, do que os pneus daquele carro amassando as folhas de outono empilhadas junto ao meio-fio.
Inesquecível, para o menino, foi ouvir o som do carro do médico se aproximando, o homem que salvaria seu pai. Na mesma hora em que li esse relato, imaginei um sem-número de sons que nos confortam. A começar pelo choro na sala de parto. Seu filho nasceu. E o mais aliviante para pais que possuem adolescentes baladeiros: o barulho da chave abrindo a fechadura da porta. Seu filho voltou.

E pode parecer mórbido para uns, masoquismo para outros, mas há quem mate a saudade assim: ouvindo pela enésima vez o recado na secretária eletrônica de alguém que já morreu.

Deixando a categoria dos sons magnânimos para a dos sons cotidianos: a voz no alto-falante do aeroporto dizendo que a aeronave já se encontra em solo e o embarque será feito dentro de poucos minutos.
O sinal, dentro do teatro, avisando que as luzes serão apagadas e o espetáculo irá começar.
O telefone tocando exatamente no horário que se espera, conforme o combinado. Até a musiquinha que antecede a chamada a cobrar pode ser bem-vinda, se for grande a ansiedade para se falar com alguém distante.
O barulho da chuva forte no meio da madrugada, quando você está no quentinho da sua cama.
Uma conversa em outro idioma na mesa ao lado da sua, provocando a falsa sensação de que você está viajando, de férias em algum lugar estrangeiro. E estando em algum lugar estrangeiro, ouvir o seu idioma natal sendo falado por alguém que passou, fazendo você lembrar que o mundo não é tão vasto assim.
O toque do interfone quando se aguarda ansiosamente a chegada do namorado. Ou mesmo a chegada da pizza.

O aviso sonoro de que entrou um torpedo no seu celular.
A sirene da fábrica anunciando o fim de mais um dia de trabalho.
O sinal da hora do recreio.
A música que você mais gosta tocando no rádio do carro. Aumente o volume.
O aplauso depois que você, nervoso, falou em público para dezenas de desconhecidos.
O primeiro eu te amo dito por quem você também começou a amar.

E o mais raro de todos: o silêncio absoluto.


Martha Medeiros

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Amores Difusos...


Não é preciso ser moderno para perceber que a nossa vida comporta amores simultâneos. Podem ser paixões dilacerantes e sombrias, como nos filmes, ou pode ser algo mais suave – um sentimento de atração que, mesmo não consumado, faz da vida um lugar melhor para os envolvidos.
Todos conhecem esse tipo de sentimento.
Há gente que nós temos vontade de ver todos os dias, cuja presença nos deixa naturalmente mais alegres. Temos prazer enorme em abraçar gente assim e a conversa com elas é mais íntima, mais fácil, mais interessante. Uma alma destituída de malícia diria que isso é amizade, mas eu tenho certeza que se trata de uma forma de erotismo – sem posse, sem dor, sem pressa, mas é desejo que resiste ao tempo. Essa não é uma forma de definir o amor?
A principal qualidade dessa sensação é ser plural.
Não nos sentimos enamorados de todo mundo, mas tampouco temos esse tipo de apego por uma única pessoa. São várias. Pode ser a ex-namorada do colégio, a amiga da faculdade, a prima. Pode ser a garota da livraria ou a moça do bandejão que virou sua amiga. A lista não será grande, mas é uma pena, porque se trata de um sentimento bom. Não é gostoso ficar feliz quando toca o telefone?
 
Você não sai transando com essas pessoas, embora pudesse fazê-lo. Você não sofre por essas pessoas, embora possa ter acontecido. Essa relação navega entre o encantamento e a amizade, tem um pouco das duas, e fica a centímetros de se tornar inteiramente uma delas. Movemo-nos entre sutilezas.

O que você faz com alguém que ama difusamente é ter momentos de troca e carinho, que carregam uma ponta secreta de expectativa. Se um dia você bebe demais e diz sinceridades comovidas, ela pode rir, beijar você ou ficar brava e mandar que se comporte – mas tudo seguirá como antes. Nessa relação há espaço para ser você mesmo.
Os amores difusos fazem parte da esfera de sentimentos que começa na pessoa que você escolheu e vai se expandindo num círculo para incluir outras pessoas de quem você precisa. Família, amigos, amores. Nenhum casal é uma ilha. Ao redor do compromisso que mantém duas pessoas ligadas há uma vasta teia de ligações, com diferentes graus de densidade, que vinculam o casal ao mundo. Os amores difusos são uma parte especialmente delicada dessa teia.
Isso nada tem a ver com relações abertas, porém.

Admitir a existência de carinho e desejo fora da sua relação amorosa é apenas uma manifestação de sanidade. Tentar viver todas essas sensações é uma besteira. Criar arranjos matrimoniais que acomodem esses múltiplos sentimentos é ainda mais fútil. A melhor solução para quem deseja correr atrás de todos os seus desejos não é um namoro ou um casamento aberto. É estar sozinho. Assim se conquista total liberdade, sem culpas ou constrangimentos.
Ando convencido que a nossa vida afetiva tem uma espécie de centro e que nele só cabe uma pessoa de cada vez. As nossas grandes aventura emocionais, a nossa verdadeira história íntima, são escritas ao redor dessa exclusividade. Pode ser uma paixão que não deu certo ou um casamento fabuloso de 20 anos, mas continua sendo uma narrativa entre duas pessoas. O resto é tumulto.

Os amores difusos pertencem a outra esfera, e por isso não colidem.

Eles são menos viscerais, mais leves, nos lembram que podemos experimentar diferentes alegrias na mesma existência. Sugerem que o grande amor romântico – esse que nos devora vivos, ou nos envolve suave como um lençol de linho – é apenas uma das experiências do afeto. Há outras, essenciais. Elas preenchem a existência com outra espécie de luz, igualmente necessária para mostrar nosso caminho.

Ivan Martins

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

O que você deseja?



Adoro finais de ano. Presentes, planos, festas, tudo me cai bem. Mesmo a correria e as aglomerações que incomodam tanta gente, a mim agradam. Fico com a sensação de estar vivendo um período extraordinário. É como se o ano todo se condensasse em meia dúzia de dias, carregados de urgência e de expectativa. Uma parte de mim volta a viver sentimentos de criança. Talvez seja isso, na verdade, que explique o meu contentamento: ele deve ser uma manifestação secreta de nostalgia.
Ao lado desse sentimento familiar, tem aparecido, nos últimos finais de ano, uma sensação inteiramente nova – a de que é preciso fazer planos. Com a corrida final para o Ano Novo, começo a ser invadido pelo sentimento de que é imperativo, de alguma forma, planejar o ano seguinte, mesmo que seja em linhas gerais. Uma pergunta complexa – o que eu quero para mim? – se esgueira sob a porta nesses dias e se instala no meio da minha sala. Exige que eu lide com ela.
Até recentemente eu não sentia isso. Sempre tive a sensação de que a vida era um grande improviso e que planejar era uma forma de trapaça. Não gostava, e ainda tendo a não gostar, de artificialidades, e o planejamento me parecia uma delas. Meu lema no amor e na vida era que as coisas tinham de acontecer com naturalidade. Olhava com uma ponta de desdém para as pessoas minuciosas que se obstinavam em arquitetar a conquista de coisas, posições e pessoas. Sentia que elas não tinham entendido a essência espontânea da vida, que eu já captara.
Como eu disse, essa sensação mudou.

Embora eu continue acreditando que as coisas que nos dizem respeito acontecem com naturalidade – não por uma questão de destino, mas sim por afinidade e talento – fui obrigado a admitir que a vida às vezes requer um empurrãozinho. Mesmo as coisas que nos cabem requerem esforço e planejamento.
Antes de fazer planos, porém, é preciso responder àquela pergunta difícil: o que eu desejo para mim? Quando a gente tem 20 anos não sente que precisa respondê-la. Há tanta coisa acontecendo, são tantas as novidades que escolher parece quase uma estupidez. A gente quer tudo e pronto. Aos 40 anos não é mais assim. Aos 50, escolher torna-se inevitável, mas, ainda então, muitos não conseguiram responder à pergunta essencial: o que eu desejo para mim?
 
Outro dia eu fui ver um show de fado, o primeiro da minha vida. A cantora era uma jovem portuguesa chamada Carminho. Ela era linda, cantava com tamanha intensidade, eu me emocionei como não acontecia há muito tempo. Fiquei lá, sentado no escuro, cheio de sentimentos exaltados, enquanto ela falava de saudades, lágrimas, amor. Saí do espetáculo amolecido e feliz. Por alguns momentos, enquanto eu guiava de volta para casa, tive a sensação de que quase tudo estava em seu lugar – e que eu sabia, perfeitamente, o que era necessário mudar, e como fazê-lo.

Com essa historieta pessoal, tento dizer que as emoções fazem parte do nosso processo de escolha. Descobrir o que fazer da vida, ou o que se deseja dela, não é o mesmo que resolver um problema matemático. Precisamos da luz dos nossos sentimentos para nos guiar. Vendo e ouvindo a cantora de fado eu consegui, por momentos fugazes, mas essenciais, refazer a ligação com o adolescente que eu era. Ele decidiu quem o homem adulto seria. Essa trilha de emoção que voltou para trás é a mesma que levará para frente. No meu caso, uma trilha essencial de identidade que tem a ver com personalidade, família, geração, classe, bairro... Para descobrir o que eu desejo, foi preciso me lembrar do que eu queria quando tudo começou. A cantora de fado me pôs no caminho.

Quando 2013 começar, portanto, pretendo estar pronto, ou quase. Com alguns planos, pelo menos. Sabendo mais ou menos em que direção eu quero ir. Feliz pela possibilidade de começar de novo. Contente com o fato de que o caminho à frente responde aos anseios do garoto que eu já fui. Disposto a fazer força e empurrar para que as coisas aconteçam. Sabendo que não é mais possível fazer tudo. Tendo a certeza, sobretudo, de que não adianta ficar parado, esperando. A vida não nos espera.

Ivan Martins

domingo, 9 de dezembro de 2012

Despedidas...




Despedida é sempre triste? Eu mesmo respondo, já que perguntei: nem sempre. As lágrimas parecem inevitáveis, mas elas podem expressar apenas o momento da separação, da ruptura, aquele instante em que alguém foge ao alcance de nossos olhos e de nossas mãos. No entanto, mesmo sob o manto de uma tristeza, o que pode inundar aos poucos o coração, muitas vezes, é uma alegria de que a gente só se dá conta depois da despedida.
Como todo mundo, eu já passei por despedidas sofridas. Quando meu pai estava internado no hospital, em seu último dia de vida, eu passei a tarde inteira ao lado dele. Estava lúcido, dormia a maior parte do tempo, debilitado pela doença, mas nas vezes em que despertava e trocava olhares comigo, ou algumas palavras, eu sentia que ele estava indo embora. Eu tentava falar do Botafogo ou de alguma enfermeira boazuda quando os olhos dele se abriam para proporcionar alguns últimos momentos de alegria a quem me deu tanta felicidade na vida. Mas houve aquele instante em que a despedida parecia tão próxima que eu aproveitei os últimos momentos com ele ao meu alcance para acariciar seus cabelos ralos enquanto dormia, beijar sua testa, segurar a sua mão, sentir o pulso ainda batendo. Foi como um réquiem de adeus, triste demais. Hoje eu me lembro daqueles momentos como uma réstia de alegria possível diante da fatalidade. Passou um tempo imenso, mas alguma alegria surgiu daquela despedida.
Outro dia fui levar minha filha mais nova, a Cecília, para sua primeira viagem de colégio, uma excursão ao Vale do Paraíba. Dessas de dormir fora uma noite, de levar a mochila com pijama, muda de roupa, escova e pasta de dente. Tínhamos combinado de sair às seis, mas às cinco e meia da madrugada ela já estava pronta, de banho tomado, maquiada e tudo. No caminho até o colégio, ela não parava de falar e eu, ainda acordando, mal conseguia responder. “Acho que vou explodir”, disse ela a certa altura, de tanta excitação. Na porta do colégio, enfileirados junto ao muro, os pais acenavam para os filhos já sentados no ônibus. Alguns faziam últimas recomendações inúteis, como “me passa um torpedo quando chegar lá” ou “não esquece de passar o repelente à noite”, mas eu só conseguia admirar a movimentação intensa da Cecília, sentada na janela, falando como uma tagarela com as amigas, tirando fotos com a máquina que me pedira emprestada. Quando a professora disse que era hora de partir, foi uma algazarra: a porta do ônibus fechando, alguns pais querendo ainda gritar instruções, como técnicos à beira do gramado, outros já apressados se despedindo porque tinham que voltar para casa e ir trabalhar. Eu só queria ver se a Cecília ainda me daria um último olhar de despedida. E ele veio imenso, generoso, os olhos arregalados de vulcão, um sorriso largo.
Ainda bem que eu tinha levado os óculos escuros. Voltei caminhando até o carro misturando lágrimas e lembranças. Fui buscar a minha primeira viagem de colégio no escaninho da memória. Lembrei até do sanduíche de presunto e do suco de groselha, mas não me lembrei da despedida. Eu devia estar em outra esfera, como estava a Cecília.
Não apareço nas fotos da viagem ao Vale do Paraíba. Se a memória da Cecília seguir a trilha da minha, provavelmente ela não irá lembrar a despedida na porta do colégio. Também sei que, enquanto meu pai dormia no hospital, não sentia os carinhos que eu lhe fazia. Mas o que importa? Esse instante da despedida é nosso, só nosso. E cada vez mais eu acho que a alegria, no fim das contas, suplanta qualquer tristeza. Porque cada despedida carrega um novo recomeço.

Alexandre Medeiros

domingo, 18 de novembro de 2012

De qual ponto você olha a vida?



Tem gente que passa a vida de onde está olhando adiante. “Quando terminar isso, correrei atrás do meu sonho”. “Quando tal época chegar, farei o que realmente desejo”. “Quando tiver tempo livre, realizarei o projeto da minha vida.” Estou falando daqueles que vivem postergando o que acham que os fará felizes, com a desculpa de que “ainda não chegou a hora”. No futuro, esse desconhecido e incerto, está a prometida felicidade. Hoje é o lugar onde estão, com muita tolerância e sem muita presença, já que bom mesmo será o amanhã.
Há um outro tipo que passa os dias olhando para trás. No ensino médio têm saudade da primeira escola; na faculdade suspiram pelo cursinho; quando entram no mercado de trabalho morrem de vontade de “voltar apenas estudar”. Casados, suspiram pela solteirice. Divorciados, sentem faltam imensa da proteção da relação a dois. Como a professorinha de Ataulfo Alves, entoam o mantra “eu era feliz e não sabia” todos os dias e para qualquer coisa. Hoje é somente um espaço de saudosismo, lamentação e ausência. A única alegria é do que passou e não voltará jamais.
Não vale esquecer daqueles que se agarram ao hoje como a única alternativa. Alguns vivem sem passado. Ignoram o que já realizaram e começam cada manhã como se fosse uma batalha iniciada do zero; sem ganhos pregressos, sem habilidades já construídas, lutando pelo pão de cada dia com uma força descomunal, com os tanques na rua, como se toda a existência dependesse apenas daquele enorme esforço. Vivem exaustos, por óbvio. Há quem, preso ao hoje, não tem perspectiva de futuro. Esses precisam usufruir de todo o prazer agora, visto que não haverá amanhã. Querem todas as alternativas, para si, já: o melhor trabalho, todas as comidas, as festas mais animadas, todos os afetos simultâneos à disposição… Hedonistas, gulosos, insaciáveis. Passar os dias assim é igualmente cansativo. Por fim, aqueles que, presos ao hoje, ignoram passado e simultaneamente não vislumbram o futuro são os mais perigosos: para si mesmos e para o mundo. É verdadeiramente arriscado não enxergar o fio da história, embora a maioria ignore isso.
Penso que personagens tão bem caracterizados não são comuns. Caricaturas boas para textos literários, com suas exclusividades, mas raros na vida real, convenhamos. No fundo, todos temos um pouco de saudade do ontem, um punhado de sonhos para amanhã e encaramos o presente com a energia e o prazer possíveis. Às vezes há mais equilíbrio entre as variáveis, noutras menos e a vida segue com suas alternâncias razoáveis. Não consigo deixar de perceber, contudo, que em algumas fases da vida somos mais passado, em outras só futuro e de vez em quando conseguimos estar nesse lugar estranho que é o presente, aquele que, quando percebemos com o cérebro, já se foi há 3 segundos.
Quando estamos na adolescência (e integramos a parcela da sociedade cujos pais conseguem assegurar o mínimo da existência), existe hoje e, no máximo, a próxima festa da turma. A vida é longa, há dezenas de milhares de dias pela frente, nada justifica tanta preocupação como os educadores querem convencer, principalmente se considerarmos a avalanche de alegrias, sofrimentos, felicidade e dores que o agora propicia. Qualquer besteira pode ser superada. Praticamente tudo está por vir, erros abissais têm plena condição de serem corrigidos, praticamente nada tem consequências definitivas e nos tornamos super-heróis frágeis que erramos (muito), acertamos (pouco), amparados pela inexperiência. Desse ponto da vida, tudo está à frente e os olhos, o coração e a alma estão grudados no hoje. Intensamente. Exclusivamente. Exageradamente.
Na terceira idade, também existe o hoje e, no máximo, o amanhã. A vida é curta, você já viveu dezenas de milhares de dias que ficaram para trás, nada justifica tanta preocupação como os filhos e netos querem convencê-lo, principalmente se considerar as emoções suaves, sem grandes desesperos, dramas ou excessos, que o agora propicia. Nada parece ser besteira. Os maiores erros já foram cometidos, foi possível sobreviver a todos e se reinventar a cada um deles. Os acertos foram em bom número, principalmente depois de um determinado momento da vida adulta. Já deu para descobrir que nada é definitivo, nem quem você desconfia que seja. Continua errando, continua acertando, amparado por escolhas que lhe parecem fazer sentido a cada momento. Desse ponto da vida, melhor que os olhos não se voltem demais ao passado, nem se estendam demais para o futuro. Uma certa coerência atual está de bom tamanho e costuma ser suficiente para alguns momentos felizes.
Cá de mim, aproximo do que chamam “o meio da vida”. Não é mais possível arriscar alto e pagar para ver, sem condições efetivas de arcar com a fatura que cada escolha traz, mais à frente. Erros graves têm consequências sérias e duradouras. Qualquer um se reinventa até com certa facilidade de uma bobagem feita aos 20 anos; já aos 40, a coisa muda de figura. É preciso prestar atenção na máxima “plantar é escolha, colher não”; a semeadura feita por volta das quatro décadas de vida define em boa proporção como serão as décadas seguintes, uma parte bastante nobre da existência. Não dá mais para seguir fazendo o que não faz sentido, nem sendo o que não se é. Aos 40, já sabemos o que não queremos e desconfiamos do que de fato desejamos. Conhecemos um tanto bom das nossas fraquezas, habilidades, virtudes e dificuldades. Paramos de brigar com quem vamos nos tornando e passamos a nos administrar, com entrega. Descobrimos que a responsabilidade por dias felizes está em nossas mãos e começamos a inventar uma rotina de manter os pratos girando e dar conta do principal: a própria vida. Ainda não é possível dizer, com tranquilidade: “não dou conta”. Mesmo porque ainda temos força e um bocado de coragem. Escolhemos dar conta de múltiplas coisas, sonhar vários sonhos, cuidar de muitos queridos e correr atrás de importantes projetos. A decisão de fazê-lo não é um comportamento irresponsável de quem não tem noção. É mais uma habilidade com que ainda contamos fisicamente e que já adquirimos emocionalmente. Desconfio que seja bom aproveitar. Porque, como tudo na vida, vai passar. Estaremos, daqui há um tempo, mais livres para, sentindo, dizer simplesmente “ah, isso não, não me interessa…” ou “disso não sou capaz”, tomando um chá, em casa, em um fim de tarde qualquer. Deve ser bom experimentar essa sensação de pouca urgência e de menos demandas relevantes, incorporando os limites naturais que surgem e usufruindo a liberdade do vazio. Mas hoje não. Ainda não. Muito interessa. Muito desejamos. Muito realizamos. Muito sentimos. Muito fazemos. Muito sonhamos. Um bom ponto para se olhar e se viver a vida.
Meu conselho? Abram os olhos. E vejam. Olhar sem ver é coisa muito triste. Enxergar, olhando, a cada instante é trem bonito demais para se desperdiçar nesse mundão de meu Deus…


Por Raquel Carvalho

domingo, 11 de novembro de 2012

Os rios dentro de nós...



Afeto e desejo são sentimentos gêmeos. Em alguns momentos da existência eles se ignoram, em outros parecem inseparáveis. Na vida dos homens, mais do que das mulheres, eles são como rios paralelos que às vezes se esbarram, mas raramente se encontram. Por isso é tão mais difícil para os homens encontrar prazer e sentimentos duradouros. Por isso não conseguem estar inteiros nas relações – porque vivem divididos por dentro.

Acho que essa dificuldade explica parte das contradições que os homens exibem o tempo inteiro. “Ele disse que estava apaixonado, mas logo depois mostrou que não estava”: era o desejo falando, sem o amparo duradouro do sentimento. “Ele foi embora, mas voltou logo depois, dizendo que me amava”: o corpo da outra precisou estar ausente para o sujeito perceber os próprios sentimentos. “Ele parecia tão interessado quando eu não queria, depois que eu me apaixonei ele sumiu”: o desejo enlouquece com o que ainda não tem, e pode se cansar rapidamente depois de saciado. Afetos são mais constantes e duradouros.
Nenhum desses comportamentos é exclusivamente masculino, mas eles são mais visíveis nos homens – embora a gente escute reclamações, cada vez mais frequentes, de que as mulheres estão agindo de forma igualmente egoísta e superficial. Num mundo ordenado cada vez mais profundamente pela lógica da posse e do consumo, ninguém está imune a se portar como colecionador serial de corpos e pessoas descartáveis. Pode ser, mas o convívio sugere que mulheres ainda são mais atentas aos próprios sentimentos, e que eles falam mais de perto com as sensações delas de prazer. 

Dou um exemplo: mesmo homens maduros podem se descobrir à beira de um colapso nervoso ou de uma depressão enquanto se relacionam, simultaneamente, com um bando de mulheres. O sujeito está péssimo, mas continua ali, tentando resolver sua angústia num mar de... mulheres. É mais difícil achar uma mulher numa situação dessas. Mesmo aquelas que poderiam abusar do corpo ou do carisma agem de outra forma. Uma rápida peneira afetiva faz com que o bando de candidatos ou fiquetes seja reduzido a um (ou dois) que tenham significado emocional. O resto dança. As mulheres são menos propensas a se perder num mar de corpos. Os homens, para o bem e para o mal, parecem às vezes ter nascido para isso - ainda que os corpos sejam somente imaginários.
Outro dia, uma aluna de jornalismo que está fazendo um trabalho de conclusão de curso me fez a pergunta de um milhão de reais: o que é o amor para você? Na hora, claro, eu respondi bobagens prolixas. Horas depois me ocorreu uma resposta mais simples, que tem a ver com o assunto do qual estamos tratando. Amor é foco. Amar é sentir que a vida se condensa em torno de um sentimento e de uma pessoa, e por isso se torna deliciosamente simples, tanto quanto intensa. As dúvidas e os problemas recuam para o segundo plano. O tédio, o medo, a confusão se dissolvem num grande sentimento claro e límpido. Ele é como o facho de luz que atravessa uma lente e se transforma, do outro lado, num único ponto rutilante.
Essa definição de amor significa o contrário da multidão de corpos. Ela é sinônimo de escolha e singularização. Talvez por isso seja difícil de atingir, e ainda mais difícil de manter. O desejo que se desloca de um corpo para outro, sem passar pelo filtro rigoroso e constante do afeto, é o contrário da seleção. Ele não implica em renúncia nenhuma, e talvez não leve a lugar algum.

Não sei se o desejo inquieto dos homens algum dia será coletivamente diferente, mas, pessoalmente, individualmente, ele muda. Com o passar do tempo, cresce de maneira imperceptível a vinculação entre sentimento e desejo na vida dos homens. O sujeito não se torna necessariamente mais constante, mas o desejo dele começa a ser subordinado a critérios que as mulheres talvez reconheçam, por serem afetivos – ele deseja quem conhece melhor, deseja mulheres de quem gosta. Aquela dona escultural de quem ele nem sabe o nome é uma delícia, mas não é com ela que ele sonha embaixo do chuveiro. O desejo profundo passa a incluir formas de intimidade e acolhimento. Continua volátil, ainda insiste em ser voraz, mas cada vez está mais vinculado aos afetos. Os rios do amor e do desejo cuidadosamente se aproximam. Talvez uma vida não seja suficiente para que se juntem, mas quem realmente sabe?


Ivan Martins