domingo, 23 de fevereiro de 2014

Para que serve uma relação?


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   Uma relação tem que servir para você se sentir 100% à vontade com outra pessoa, à vontade para concordar com ela e discordar dela, para ter sexo sem não-me-toques ou para cair no sono logo após o jantar, pregado.

   Uma relação tem que servir para você ter com quem ir ao cinema de mãos dadas, para ter alguém que instale o som novo enquanto você prepara uma omelete, para ter alguém com quem viajar para um país distante, para ter alguém com quem ficar em silêncio sem que nenhum dos dois se incomode com isso.

   Uma relação tem que servir para, às vezes, estimular você a se produzir, e, quase sempre, estimular você a ser do jeito que é, de cara lavada e bonita a seu modo. 

   Uma relação tem que servir para um e outro se sentirem amparados nas suas inquietações, para ensinar a confiar, a respeitar as diferenças que há entre as pessoas, e deve servir para fazer os dois se divertirem demais, mesmo em casa, principalmente em casa.  

   Uma relação tem que servir para cobrir as despesas um do outro num momento de aperto, e cobrir as dores um do outro num momento de melancolia, e cobrirem corpo um do outro quando o cobertor cair.
   
   Uma relação tem que servir para um acompanhar o outro ao médico, para um perdoar as fraquezas do outro, para um abrir a garrafa de vinho e para o outro abrir o jogo, e para os dois abrirem-se para o mundo, cientes de que o mundo não se resume aos dois.

Drauzio Varella

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O ingrediente secreto...




A intimidade é inviolável. Saber o que se passa no coração alheio é uma pretensão tola. A maneira como sentimos amor, como lidamos com sexo, como reviramos na cama sob o peso de uma lembrança – ou de um corpo – constituiu uma reserva indevassável de individualidade. Apenas a arte, a psicanálise ou a sinceridade dos amigos nos aproximam, precariamente, da verdade dos outros. O resto é empáfia.

Na semana passada, depois de ver pela segunda vez o filme Ninfomaníaca, fui assaltado pela vontade de falar de uma questão insolúvel da nossa intimidade: a relação entre amor e sexo.

A certa altura do filme, uma personagem sussurra ao ouvido da outra: “O ingrediente secreto do sexo é o amor”. Lindo, mas a personagem que recebe a revelação não acredita. E como poderia? Ela é uma devassa enrijecida, sem conhecimento do afeto. Quando se trata de sentimentos, o que é verdade palpável para um de nós pode ser romantismo pueril para o outro. E vice-versa.

Eu mesmo, embora romântico, ao ouvir a frase do filme pensei que também se poderia dizer ser o contrário: “O sexo é o ingrediente secreto do amor”. Estaria errado? Não. Há muitos para quem a intensidade do sexo é que define a ligação amorosa. Quando o sexo é bom, seus sentimentos vão de roldão.

Quantos de nós somos assim? Nem tantos, eu acho. Minha percepção é que a maior parte das pessoas, homens e mulheres, está disposta a trocar sexo por romance. O melhor sexo fica na memória, ou persiste em escapadas. Mas a pessoa por quem somos apaixonados, (sabe-se lá por que razão), queremos perto de nós, “para sempre”. Aceitamos até sexo irregular e meia boca em troca da sensação de amar.

O desejo nos perpassa a vida, mas não tem a capacidade do amor de nos ligar às pessoas. Fenece rápido, enquanto o anseio amoroso dura. Talvez se possa dizer que o desejo é uma sensação permanente e impessoal, refere-se a muitos, enquanto a paixão é incomum e voltada a um ser específico. Eles se misturam, mas raramente se confundem.

Isso não implica numa hierarquia de sensações. Não quer dizer que o amor é mais nobre. Mas sugere que as emoções têm tempo e qualidade diferentes. Não se constrói com o sexo o mesmo que se constrói com o amor. Não se extrai dele o mesmo grau de compromisso e nem a mesma dependência emocional. Quando o sexo com alguém começa a se tornar fundamental, deixou de ser apenas sexo. Virou carinho ou paixão. Ganhou um rosto. Sexo pode ser anônimo; amor tem identidade.

Mas, na vida de cada um de nós, frases gerais não fazem sentido. Somos peculiares e contraditórios. Fomos dotados pela natureza do poder de fazer sexo a todo momento, quase indiscriminadamente, mas não agimos assim. Alguma conexão afetiva é necessária. Uma pitada de amor, ainda que ilusória, torna o sexo possível no dia a dia. Nos dá segurança para se despir, física e metaforicamente, diante do outro. Para a maioria é assim, eu imagino. Mas, para outros, eu sei, a desconexão afetiva é essencial. Sem ela, não conseguem mergulhar na insensibilidade moral sem a qual o sexo se torna excessivamente cuidadoso.

Não é curioso? Precisamos de algum grau de intimidade para chegar ao sexo, que é fornecida pelo afeto. Mas, no curso do sexo, temos de nos desvencilhar do afeto, temos de despersonalizar o outro com títulos vulgares (seu isso, sua aquilo) para alcançar a luxúria, de onde emana o prazer mais visceral. Há uma tensão permanente entre essas coisas na vida da maior parte das pessoas. E no interior dos casais. O sentimento abre portas que levam ao sexo, mas em algum momento é necessários superá-lo para chegar até o fim - aonde se vai, contraditoriamente, apenas em companhia de quem nos dá segurança afetiva.

Mas isso tudo, claro, são suposições. A intimidade de cada um de nós é coberta por um véu de mistério e incompreensão. As misturas que fazemos de amor e de sexo, ou as trocas entre eles, nós s apenas somos capazes de admitir, e teríamos dificuldade em entender. Mas é fato que essas duas entidades - o desejo e o afeto - nos habitam. Duelam dentro de nós permanentemente. Às vezes, para nossa felicidade, se abraçam. Nesses breves momentos, que jamais serão eternos, a vida nos parece simples e sublime. Como a de um bicho

Ivan Martins

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Destino se inventa...



Se eu fosse mulher, tivesse 30 anos e não estivesse num relacionamento sério, minha lista de planos para 2014 começaria com quatro palavras: arrumar uma relação legal.

Imagino, claro, que a mulher de 30 se parece comigo na idade dela: meio carente, um tanto romântico e cheio de planos para o futuro. Planos, que, no meu caso, incluíam alguém para partilhar a vida.

Há muitas pessoas que não sentem assim, evidentemente. Há caras e garotas que vivem bem sozinhos. Tão bem, na verdade, que não desejam juntar os trapos e se comprometer. Eles transam quando querem, ficam bem sozinhos e extraem da sedução frequente aquela satisfação que outras pessoas só encontram na intimidade duradoura com uma mesma pessoa – por mais que ela traga seus próprios problemas.
Não é raro que se tenha inveja desses sedutores solitários, mas suspeito que eles, de vez em quando, também gostariam de ser diferente do que são.

Mas, se você sente que não nasceu para circular de forma autônoma, se você, no fundo da sua alminha inquieta, percebe aquele desejo ancestral de acasalar e (quem sabe?) fazer família, temo que a única solução para 2014 seja procurar um par.

Parece absurdamente óbvio o que estou dizendo, mas, acreditem, não é.

Estou cansado de conversar com mulheres de 30 anos que parecem ter desistido do projeto casal. Falam em adotar sozinhas uma criança, congelar óvulos ou viver avulsas para sempre, navegando entre um casinho e outro, entre um e outro site de relacionamento. Estão jogando a toalha, como se dizia antigamente – embora sejam jovens, atraentes, interessantes, bem sucedidas no trabalho. Um paradoxo de saias.

O que elas contam é que chegaram a uma idade em que é preciso tomar decisões, mas não há em volta delas sujeitos que queiram dar um passo adiante – ou, frequentemente, sujeitos com quem elas gostariam de dar o tal passo. Homem sempre existe, diz uma amiga minha. Mas cadê o homem que a faça sentir apaixonada? Ou que, tendo penetrado a couracinha afetiva dela, não se mostre mais interessado em seguir livre, rompendo outras couraças por aí?

A vida não é simples, naturalmente. Frequentemente, porém, ela tem solução. Que, neste caso, pode estar na atitude.

Acho que nós, homens e mulheres do século XXI, ainda temos um olhar adolescente para as relações afetivas. Queremos que nos caia do céu um romance arrebatador, pronto e completo, sem contradições ou dúvidas. Sem defeitos constrangedores também. Exigimos ser amados pelo que somos, mas estabelecemos condições elevadas para amar. Tendemos, de forma tola, a nos apaixonar pela beleza, pelo charme, pelo riso. Apostamos no clichê e na superfície, mas aspiramos ser tratados de outro jeito: queremos ser apreciados pela profundidade dos nossos sentimentos e por nosso caráter.
Outro tipo de atitude é possível, porém.

Outro dia, conversando com uma amiga sobre o casamento dela – que já tem 10 anos – ouvi algo surpreendente. “Eu tive muita sorte”, ela me disse. “Meu marido é um cara maravilhoso, mas eu poderia ter amado alguém muito pior.” Vocês percebem como é generosa essa última frase? “Eu poderia ter amado alguém muito pior” significa, essencialmente, que ela estava pronta quando o sujeito apareceu. Ele não precisava ser rico, lindo, heróico  Seria suficiente que a encantasse – e ela, lindamente, admite que não teria sido difícil. Um bom homem bastaria.
Acho que há nessa história ainda mais do que parece.

Nela se manifesta a disposição da mulher – embora pudesse ser do homem – de inventar o seu próprio destino. Acho que o romantismo pueril disseminado à nossa volta (em conversas, filmes, novelas, livros e até colunas da internet) nos transforma em criaturas passivas diante da nossa própria vida.

Agimos como se o amor fosse um evento externo à realidade. Partilhamos a convicção estranha de que diante do amor não temos nada a fazer. Acreditamos que a única atitude frente ao afeto é esperar que ela apareça. Não entendemos esse aspecto da existência como algo sob nosso controle - embora ele seja mais uma etapa da existência, outra experiência essencial da qual não faz sentido abdicar, mas diante da qual não deveríamos apenas sentar de boca aberta, embasbacados e passivos.

  Em outras palavras, me ocorre que construir uma relação estável é como terminar o colégio, escolher a faculdade, lançar-se a uma profissão, sair da casa dos pais: uma experiência que precisa ser praticada, tentada, pensada e, de vez em quando, improvisada e remendada. Ao final, talvez, aceita da forma como apareça.

Logo, se eu fosse uma mulher de 30 anos sem uma relação estável - ou um homem da mesma idade e na mesma situação –  olharia em volta neste primeiro dia do ano da graça de 2014, seja na praia chuvarenta ou na rua ensolarada da cidade, em busca de alguém com que eu quisesse passar os próximos dez anos.

Ele ou ela pode estar pertinho. Ou não. Mas é certo que essa pessoa existe, porque não se trata de um semideus ou de uma criatura engendrada pela Providência. É um homem ou uma mulher comum, como tantos, a quem você concederá, de forma particular e única, embora não irrefutável, o privilégio do amor. A quem você oferecerá o direito a partilhar alguns dos momentos mais importantes da sua vida – e que receberá, atônito ou comovida, a honra do seu amor. Estar com ele ou com ela será infinitamente melhor do que jogar as mãos para o alto e desistir. Aliás, como regra não se desiste da vida, nem das coisas que a tornam importante.
Ivan Martins
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quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Homens aprendem...


A vida parece curta para o ritmo em que a gente aprende. Demora uma eternidade para que coisas óbvias se apresentem diante de nós em sua clareza elementar. Perdemos décadas da nossa existência no interior de uma grossa névoa de burrice emocional. É somente na virada dos 40 anos, às vezes dos 50, que a luz atravessa as nuvens. Não é tarde, mas é uma pena. Se a compreensão viesse antes, talvez a vida fosse melhor.

Falo por mim, naturalmente.

Haverá quem tenha entendido o mundo desde cedo. Deve haver gente extraordinária que percebe – aos 15, aos 20 anos, talvez aos 30 – que é impossível ter tudo ao mesmo tempo e que a arte da renúncia antecede o gozo. Alguém deve ter percebido, antes de ter cabelos brancos, que comprometer-se (pro-fun-da-men-te) é parte da experiência de ser feliz. Comigo não foi assim.

Falo de homens, claro.

Eles se debatem no interior dos relacionamentos como se estivessem se afogando. A mulher é bacana, a vida é boa, o sexo flui como música de câmera – mas o sujeito soçobra em ansiedade, incapaz de aquietar-se. Seu desejo se multiplica em todos os sorrisos, todos os cabelos, todo quadril largo ou estreito que passe requebrando. Ele muitas vezes nem faz sexo além da cerca, mas sua fidelidade se restringe ao sentido forense da palavra - não há contato físico, mas sobra imaginação e sofrimento, com terríveis consequências.

A relação verdadeira, que começara apaixonada, vai murchando. A sombra da tristeza invade a casa dele, a cama dele, o sorriso da mulher dele. Mas ele não sabe que precisa opor-se a isso. Acredita que o amor tem de brotar pronto e perfeito, sem esforço. Assim, ele desiste. Deixa rolar, broxar, o sentimento esvair-se. É um espontaneísta, afinal. Ou uma anta, como perceberá logo depois. Mas então o barco já terá virado.

No fundo, eu temo, ele queria que desse errado.

Estar casado (ou estar junto, ou ter alguém) era um estorvo. Havia muita coisa acontecendo e ele nunca renunciara. O casamento, (o namoro, a relação) sempre lhe parecera provisório. Tinha vergonha de fazer planos. Sentia-se numa farsa onde faltava algo. Ele achava que era amor. Anos depois, descobriu que era maturidade, comprometimento, empenho. Dele. Não sabia que era preciso dar-se. Talvez nem soubesse como. Criatura bruta e triste, cheia de fome.

Ainda bem que o tempo existe.

Com ele, aprende-se a importância das coisas. Com a soma das experiências repetidas, mesmo um sujeito lerdo – e são quase todos - entende que é preciso cuidar da mulher que ele ama. Não apenas como um objeto de prazer que pode irritar-se e partir. Não apenas como algo que ele pode perder. Mas como uma parte essencial da vida dele, que tem de ser preservada e aprimorada. Com o tempo e com boa vontade, o sujeito aprende a reciprocidade. Mas leva tempo.

Ivan Martins

sábado, 14 de dezembro de 2013

Antes que a morte nos separe...


                            


Enterros, velórios e missas de sétimo dias são ocasiões que nos fazem pensar, inevitavelmente. Estamos ali, vivos, na presença física ou espiritual da morte. Em geral, ligados a ela por alguém amado ou conhecido que se foi. Não dá para evitar a filosofia nessas horas – e um pouco de medo.

Dias atrás, despedi-me de um conhecido que partiu antes da hora. Entrei sereno na igreja, reconheci velhos colegas e me sentei entre eles para esperar a missa. A cerimônia transcorreu sem sobressaltos até o final, quando o padre deu a palavra à companheira do morto. Emocionada, mas firme, ela leu umas poucas palavras ao microfone. Essencialmente, disse que ele talvez não soubesse o quanto o admiraram, quanto o queriam aqueles que ele deixara para trás. Foi o que bastou para me inquietar.

Por causa das companhias de seguro, que vivem nos lembrando da fragilidade da existência, somos levados a pensar, de vez em quando, sobre o estado material da nossa vida. Se eu morresse amanhã, o que deixaria para trás? Está tudo certo, estão todos amparados, os papéis estão em dia? Gente muito jovem não se preocupa com isso, mas basta ter filhos para que essas ideias, insidiosamente, nos visitem. É natural e até saudável. Só quem se acha eterno está isento de preocupações. Os outros temem.


Mas não foi isso que me inquietou na igreja.

O que as palavras da viúva evocavam era algo diferente, imaterial. Ela falava do legado emocional e afetivo do morto. Ela aludia, em seu breve discurso de despedida, ao que ele deixara sentimentalmente para trás – de forma incompleta - com os amigos, com a família, com a mulher. Suas palavras faziam pensar nas relações rompidas pela morte e no estado das relações com os que ficam. Se morrêssemos amanhã, o que restaria sem ter sido dito? Muito, eu imagino.

Nossas vidas estão repletas de relações pendentes.

Há o amigo, a ex-namorada, a prima com quem você não fala há muito tempo, embora isso o inquiete. Questões grandes ou pequenas esperaram ser resolvidas com o irmão, com o tio, com a amiga com quem você, talvez, não tenha agido direito. Dentro do círculo mais íntimo, mesmo ali, persiste a sensação de que nem tudo foi dito entre pai e filho, entre marido e mulher, entre namorados de longa data. Na avalanche estúpida das horas que se esvaem, tendemos a adiar conversas e encontros. Eles não são urgentes, nos parece. Temos todo o tempo do mundo, nos iludimos. É natural que seja assim.

Tudo o que está vivo é incompleto. Não é diferente com as relações humanas. Apenas o que acabou emocionalmente está concluído e encerrado. O resto segue nos assombrando com vírgulas, reticências e interrogações. Aquilo que está vivo é uma possibilidade. Somente a morte coloca o ponto final em algumas relações. Naquelas que mais importam, eu diria. Naquelas que nos inquietam e das quais nos cabe cuidar.

Ao contrário das coisas materiais, é impossível resolver relações vivas. Elas podem ser cultivadas, saboreadas, vividas, mas não resolvidas. Elas prosseguem. Nunca haverá a conversa definitiva com aqueles que a gente ama. Talvez haja a última, mas isso não se sabe. Sabemos da conversa mais recente, da próxima. Dessas deveríamos cuidar. Sempre haverá outro programa de televisão, outro filme, outro amigo chamando ao telefone – mas o momento deste encontro não se repete. As palavras que trocamos aqui (ou não trocamos) fazem diferença.

O que podemos fazer – e que talvez devamos fazer – é manter nossas relações em dia. Se alguma coisa trágica ocorrer, teremos rido juntos ontem, ou falado na semana passada sobre o filme. Talvez tenhamos discutido ao telefone – é inevitável – mas dormimos abraçados, conversando baixinho. Lembrei de comprar o presente no dia certo, liguei aquela noite como prometido, tomamos um porre medonho na sexta-feira, conversamos longamente no carro durante a viagem. Andávamos na rua quando a chuva começou. Estivemos felizes, estivemos bravos, estivemos juntos. Foi bom.

Será que me faço entender?

As coisas materiais têm o poder de nos obrigar a agir. Os nossos sentimentos, estranhamente, não. Saímos todas as manhãs para o trabalho, ligamos para o advogado, trocamos emails com gente chata sobre o projeto que nos interessa. Mas não gastamos uma fração dessa energia para cuidar de coisas que nos são intimamente caras: o amigo de quem temos saudades, a ex-namorada que está na pior, a tia de que gostamos tanto. O cotidiano dos sentimentos e a rotina das relações são negligenciados. Ou tratados com menos importância do que deveriam. Ao contrário do que parece, isso não constitui uma traição aos outros, mas a nós mesmos.

Por isso fiquei inquieto com as palavras da missa.

Tive a impressão de que minhas pendências são grandes. As contas e os impostos estão pagos, mas a vida emocional está atrasada. Se eu sumisse hoje, se eu morresse, muitas palavras ficariam por serem ditas, muitos abraços ficariam no ar. Pessoas queridas ficariam sem respostas. Tive a impressão, na missa, de que há muito a fazer antes que a morte nos separe – e que o tempo, afinal, não é tão longo.

Ivan Martins

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Há uma tristeza em nós que precisa ser respeitada...



       


Há uma tristeza em nós que sobrevive às maiores alegrias. Todo mundo sabe disso. Freud, Shakespeare, Paulo Leminski. Um dia, inevitavelmente, os neurocientistas irão localizar, com ajuda de ressonância magnética, o vão do cérebro que permanece cinza mesmo no auge da euforia e no ápice da paixão. Então saberemos, com rigor científico, o que sempre soubemos: que a sombra e a melancolia são partes inseparáveis de nós.

Ter isso claro ajuda a entender o que nos passa. Ajuda a compreender nossos humores estranhos. Ajuda a entender uma tarde sombria no auge do verão. Ajuda a aceitar uma noite em claro, o silêncio no meio da festa, a vontade irresistível de chorar ouvindo uma canção no rádio. Também somos assim.

Às vezes temos sonhos de abandono em momentos serenos da vida. Neles, a pessoa que a gente ama vai embora, nos vira as costas, torna-se repentina e irremediavelmente inacessível. A gente acorda de um sonho desses com a alma turva, tomado de desconfiança. Olha cheio de ressentimento para a outra, adormecida ali ao lado, e se pergunta: por quê?

Não acho que exista uma resposta, mas eu tenho uma teoria.

A mim parece que a natureza nos dotou de alarmes. De quando em quando, um deles dispara para nos lembrar, realisticamente, que não há bem que sempre dure. É como se algo em nós dissesse (através do sonho, da inexplicável melancolia, de um pressentimento repentino), “Por favor, não se acostume. As relações não são eternas, a vida não é simples, a dor é inevitável.” Algo em nós avisa que a tristeza faz parte da vida.

Muita gente não está interessada, claro. A moda é parecer feliz e bem-sucedido. Tem mais de um rei do camarote dando pinta por aí. Mas essa fachada social sorridente precisa ser posta de lado na intimidade - ou a intimidade não existe. No aconchego de uma relação verdadeira, tem de haver espaço para os nossos medos, as nossas falhas e as inconfessáveis inseguranças. O lado B da alma humana precisa aparecer, nem que seja no escuro. Sem ele a gente não se entende, nem entende o outro.

Isso não cabe na trama das novelas, mas pessoas de verdade têm sonhos e dias ruins. Gente de carne e osso frequentemente parece incompreensível. Certas manhãs, elas nos olham com tanta tristeza que dá vontade de escrever um poema, de abraçar apertado, de segurar pelas bochechas e dizer “Eu sei como é. Eu estou aqui”. Talvez nem adiante, mas faz parte. Estamos nesse mundo também para nos consolar mutuamente.

Por isso acho bacana respeitar minha tristeza e a dos outros. Ela faz parte. Nos livra da idiotia de um sorriso permanente. Nos coloca em harmonia com um mundo nem sempre gentil. Reflete algo de profundo e inexorável da nossa biologia. No final das contas, é parte de nós. Como a alegria. Se não ligarmos para ela durante o dia, virá nos visitar durante a noite, num sonho – do qual sairemos de olhos molhados e sozinhos, até que um abraço nos resgate.

Ivan Martins

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

O bilhete em braile...




As duas caminhavam à minha frente, conversando. Quando eu me preparava para ultrapassá-las, a mais alta se inclinou na direção da amiga e disse a frase devagar, com raiva: “Juro, no dia em que eu for embora, vou deixar para ele um bilhete em braile. O cara é cego!”

Se eu fosse metade do jornalista que eu gostaria de ser, teria parado naquele instante, girado 180 graus, e perguntado à moça, sem hesitação, quem era o tal sujeito e o que ele fizera para merecer uma jura tão triste, e tão bonita.

Mas não. Eu apenas atrasei o passo e prossegui, lentamente, com olhos e ouvidos voltados para trás, na esperança de ouvir o resto da história. Não adiantou. A moça alta se calou com ar resignado e a amiga dela, que não tinha olhos de poeta, pareceu aliviada com o silêncio. Amores tristes, nós sabemos, podem ser infinitamente chatos.

A frase da moça, porém, ficou comigo. Mesmo sem um enredo que lhe desse substância, aquela imagem – o bilhete em braile - teve a força de despertar em mim a memória de uma dezena de situações em que eu poderia ter dito o mesmo.

Todos que já foram deixados, ignorados, enganados ou simplesmente esquecidos sabem como pode ser doloroso enxergar quando o outro se recusa a abrir os olhos.

(A pessoa que você mais quer no mundo está ali, trocando você por uma roubada, ou agindo da maneira mais escrota, e não há o que dizer. Ela não percebe. Está cega. Age como se você não existisse. Mudou inteiramente de lealdades. Não é mais a pessoa que costumava ser. Tornou-se distante e fria. Você sabe que ela está fazendo uma bobagem, você a conhece. Sabe, ou imagina saber, que dentro de algum tempo ela se dará conta, enxergará, mas então será tarde. Você tem seu orgulho, afinal. A vida é breve, a fila anda, corações lastimosos encontram amparo e futuro. Então, a pessoa que você mais quis no mundo estará lá, pedindo, e você não terá nada a dizer. Sinto muito, talvez. Talvez nem isso.)

Não há nada que cegue tanto quando o cotidiano.

Ver alguém um milhão de vezes é como deixar de ver. As retinas preguiçosas recusam novidades. Aos olhos de hoje, aquela pessoa é a mesma de ontem, de uma semana atrás, de um ano. Estranhamente, não é mais aquela criatura fascinante dos primeiros dias. A beleza já não impressiona, a inteligência não surpreende, o temperamento não comove. Aquilo que todos enxergam o cego de convívio nem percebe. Está tudo lá, mas ele não vê, miseravelmente. Talvez seja preciso um pé na bunda. Ou talvez baste um bilhete em braile.

Somos assim, eu acho. Não há culpa. De quando em quando deixamos de ver o outro, embora ele esteja lá, ou talvez por isso o mesmo. É necessário redescobri-lo. Às vezes o colírio de uma briga faz o milagre. Outras vezes é preciso vestir os óculos do abandono para enxergar.

Nada disso é certo, porém.

Alguns amores perderão contorno com o tempo, irremediavelmente. Com outros, teremos logo cedo a sensação aborrecida de ter visto tudo. Poucos nos manterão de olhos arregalados e queixo caído. Um número ainda menor entrará no nosso universo e fará parte dele - sem fogos de artifício e sem holofotes girando no céu da madrugada. Apenas estará lá, como um pedaço discreto e irremovível da nossa vida. Até que uma cegueira nos separe.

Você sabe, não há garantias contra isso.

Somos presunçosos e bobos. Acreditamos, sem qualquer razão, que amanhã será melhor que hoje, mesmo que hoje seja um dia lindo. A esperança está na nossa natureza e ela é cega. A esperança cega. Ela nos põe com os olhos no futuro, a esperar, enquanto a vida acontece agora, em sua plenitude casual. Você acorda numa manhã chuvosa de primavera e ao seu lado há um ser humano adormecido. Você o conhece, você o deseja, o dia será longo e bom ao redor dele. Mas os olhos insistem em não ver o óbvio.

Por isso eu gostaria de conversar com a moça da rua. Saber a razão da mágoa dela. Entender aquilo que o cego não percebe. Enxergar por ele, talvez. Me redimir do tanto que deixei de ver. Me confortar por tantas vezes em que deixei de ser visto. Sabendo, como eu sei, que há um quê de inexorável na escuridão dos sentimentos. Elas acontecem e voltarão a acontecer. Se ao menos pudéssemos contá-las, sairiam das sombras onde moram as tristezas invisíveis. Daríamos voz ao que não se vê.

Ivan Martins