segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Volte a bordo!

 
 
Como colocar o barco de novo em movimento...
 
Volte para o navio, cacete!, e tente reescrever a cena de como estava tudo antes de começar o naufrágio. Sem pânico. Não telefone ao comandante dos portos para dizer que está tudo escuro e que você, socorro!, sente muito medo de não ter mais o controle da situação. Acontece. É da vida de quem se põe ao balanço do oceano. Um dia ele nega os peixes com que você alimentava a Musa protetora. Vire-se.
Você está só na noite imensa, ninguém canta
a música inspiradora, o lullaby do boi da cara preta. O barulho dos polvos se aproximando espanta qualquer ideia de salvação. É o vazio, o vazio e o vazio. Só lhe resta voltar a bordo e vibrar o último fósforo. Acender a derradeira vela para refazer os passos de onde estávamos quando a sirene tocou o alarme de que havia água no porão, e ela já causava o embotamento parcial no casco do cérebro.
Caminhe sobre suas próprias pegadas, de preferência as que ainda estão secas, em brasa incandescente. Aquelas que pelas sensações radicais, de ódio ou amor, fazem você se lembrar de tudo. Ali estão, nos lugares de sempre, a coleção do Cavaleiro Negro, a palheta do B.B. King que você pegou num show e o frasco com o perfume da flor da noite que vem da rua onde nasceram as suas filhas. Tudo isso ainda está no navio, e mais os beijos, as traições, os esqueletos de amores vãos, empilhados no fundo falso do corredor. Eles sussurram a canção do “Vingança, vingança aos santos clamar”. Às vezes, você ri. Outras, chora.
Está tudo lá, no velho navio encarquilhado que já foi seu umbigo vistoso, água por todos os cantos, e é preciso traçar o caminho de volta ao controle da situação. Use a memória das migalhas de pão da infância. Abra a pasta de couro da escola e comece de novo. Tente aquele exercício de colocar uma gravura na frente dos olhos e escreva primeiro uma “descrição”, depois, uma “dissertação”. Foi a primeira aula, na primeira escola, o princípio de tudo. Em seguida você singrou mares, escreveu a própria carta náutica jogando nela os perfumes, os sabores e as idiossincrasias que encontrou pelo caminho. Não desista. O importante é voltar a bordo, estúpido! Não se jogue ao mar, em botes covardes e sem imaginação, no primeiro solavanco das ondas. Salve-se com estilo. Procure nas gavetas o caderninho azul onde você anotou a história, que lhe foi contada como real, da grande atriz dramática do Cinema Novo. Em pleno intercurso sexual, ela foi até a janela do edifício de Copacabana e gritou em homenagem ao parceiro, ainda pregado nela, que pusesse a cama na rua — eram os tempos do populismo do Jango — e ensinasse o povo a trepar. As histórias estão no navio do jeito que sempre estiveram. Elas esperam que você se acerte com o farol das vírgulas, ajuste a bússola da semântica e as conduza com carinho ao porto seguro que tiver feito a encomenda.
Volte ao leme, canalha desesperado!, e deixe de fricote. Pare de soluçar que não vai conseguir, que dessa vez a polícia costeira vai chegar, só porque a divina Musa dos mares não respondeu com a pressa de antes. Faz parte da vida de quem navega. Às vezes, falta vento. Ela se negou a dizer — barco afundando, arraias entrando pelos pulmões — como dar a volta nessa falta de imaginação? Faça você mesmo. Assopre as velas.
Anote o que estiver à vista no convés, mesmo que não lhe faça nexo, e pode ser que daí surja o SOS para desvirar o navio. Não há fórmula exata, reinvente a sua. Você viu centenas de vezes o cangote raspado da Jean Seberg, você se arrepiou com as orações que os alto-falantes jogavam sobre a velha Istambul, você apertou a mão do Mick Jagger e lhe disse, sacana, na entonação da música, “Please to meet you”. O que você quer? Quantos amores ainda serão necessários para voltar a inspiração?
Volte a bordo e alimente as máquinas com o carvão dessas histórias. Não há outro combustível possível ao navio de cada um além dos jacarés que se mexiam sob a própria cama da infância, os santos tristes escondidos pela família no Dia de Finados. Volte a bordo, comandante!, e faça o que lhe é inerente. Fogo nas caldeiras das ideias. Uma noite, no cinema, a sua mão desceu trêmula pelo decote da primeira namorada. Outra noite, você perdeu o chão quando leu Manuel Bandeira, e ele dizia que ao encontrar Tereza não viu mais nada, os céus se misturaram com a terra e o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.
Lembre-se que cada comandante move-se com a energia que embarcou pelos portos da vida. Ao chegar de volta a bordo, na dificuldade de retomar o controle, use da experiência dos lagartos que você viu no Jardim Botânico. Eles correm e param. Na verdade, correm, param e olham, depois voltam a correr. De vez em quando, lançam a língua num inseto e voltam ao que sabem fazer. Correm, param, olham e se deixam confundir com as tramas do arvoredo. Por fim, desaparecem atrás de alguma pedra para anotar em paz as curiosidades que observaram no parque — e repensam a vida.
Volte ao barco, caramba!. Já que, da proa à popa, lhe fugiram todos os heróis, do Capitão Furacão ao Mike Nelson, do Gay Talese ao Rubem Braga, revire os bolsos da calça e tire de lá a filosofia dos lagartos do parque. Junto virão o canivete suíço que os pais davam no início da adolescência; a foto, nua, de uma mulher linda que você já esqueceu o nome; um bilhete do Millôr dizendo que você é capaz, sem se confundir, de misturar alhos com bugalhos na sabedoria de que é tudo a mesma coisa.
Escreva em fluxo contínuo as palavras que estavam sendo sussurradas até que houve o apagão da crise e as vozes ao seu ouvido, antes tão claras e generosas, se calaram.  Borogodó, bunda, isonomia, bálsamo, sândalo, apoplexia, descalabro, murucututu. Pode ser que uma dessas seja a senha a ligar novamente os motores, a chave de uma carta náutica ou apenas o mote para uma mensagem na garrafa do náufrago. Não importa. Volte a bordo, cacete! — e ponha o que for, o barco, a crônica, a vida, de novo a navegar. 
 
Joaquim Ferreira dos Santos

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